segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Poema 212

Não estava à beira do abismo 
quando você me encontrou: 

pelo contrário, planava livre sobre 
pastos verdejantes, cheios de flores. 

Mas existe em todos esse desejo 
insaciável e misterioso de pouso, 

e eu me dei inteiro, como nunca antes, 
para o cuidado delicado do seu beijo. 

Amamos juntos. Perdi a intenção do voo: 
eram meus seus olhos, era seu meu corpo. 

Seus pés e passos levaram-me consigo 
a terras que jamais havia visto. Numa delas, 

você me largou. Perdoo seu deixar de amar, 
Coisa Amada. O amor que você me deu, não. 

Não o perdoo.

(Filipe Couto)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Poema 211

Deve haver alguma palavra 
que traduza sua doçura. 

Procurei no meu peito: 
nenhuma... 

Além de você, Coisa Amada, 
em mim não há mais nada, 

senão bruma.
(Filipe Couto)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Poema 210

Estive hoje no aeroporto, 
depois de horas tentando alcançá-lo, 
para buscar algo que me mandaram. 

O coração da cidade me assusta: 
fecham-se mais e mais ruas, abrem-se tímidas vistas, 
empurram-se edifícios enormes, acima até da lua. 

A cidade se espalha, não como um rio - contido entre margens -, 
mas como um mar em ressaca - que avança sobre tudo - 
testando seus limites, querendo alcançar o futuro. 

No aeroporto, 
os painéis apontavam horários e destinos 
(lazer, negócios, outros compromissos),

 e nenhum trazia meu nome: 
"Filipe Couto, 9h, Outro Lado do Mundo, 
 embarque neste segundo". 

É que não sinto nenhuma viagem aqui dentro.
Se trocasse de vida, ela teria a mesma forma: 
continuaria essa coisa meio morna em que me vejo. 

E muito mais que a cidade 
é isso que me toma de medo.
(Filipe Couto)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Poema 209

Hoje, no restaurante, 
um casal em silêncio 
(bocas preguiçosas comendo). 

Eis que erguem os olhos e dizem 
um ao outro, ao mesmo tempo: 
"- Gostou?" 

As palavras se encontraram entre eles, 
se amaram até chegar aos ouvidos 
e se transformaram depois em sorrisos. 

Essas palavras de hoje, 
entreouvidas e vistas no restaurante, 
jamais saberão que foram como nós dois: 

almas gêmeas por um instante.
(Filipe Couto)

domingo, 30 de novembro de 2014

Poema 208

Final de tarde, 
desses em que mar e sol 
se encontram num suave beijo: 

o céu ruborescido 
e a água levantando asas 
numa praia do Rio de Janeiro. 

Tudo quase tão perfeito 
quanto teu cabelo solto 
ao sabor do vento 

fazendo-te virar o rosto 
para me ver inteiro: 

alma e corpo acesos.
(Filipe Couto)

sábado, 29 de novembro de 2014

Poema 207

Einstein disse que sou louco. 
(Sim, conversei com ele há pouco...) 

Tento e tento e tento 
sempre de novo, sempre do mesmo jeito, 
só com mais esforço, 
e não a tenho a meu lado. 

Nietzsche me contou outra história. 
(Ele apareceu agora pra um bate-papo no café...) 

O acaso existe e é com ele (por ele?) 
que se movem os pés na dança 
das estrelas, dos sonhos, da pele: 

com sensatez, não há festa. 

E agora? 
Se louco, sozinho; 
se sensato, num mundo chato? 

Amigos meus, 
o que será deste sábado? 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Poema 206

A vida tem prazo, 
e não é de validade: 
há vidas longas e pequenas; 
outras curtas e imensas. 

A vida tem prazo, 
e só não se perder pelo caminho 
já é um milagre. 

E, se a vida tem prazo, 
manter as veias acesas sem propósito, 
ter um corpo sem uso, um coração sem pulso: 
eis a receita perfeita para um desastre. 

Mas ter um gosto de lágrima que resiste, 
ou de um beijo que (ainda) inexiste, 
ou de um carinho que passou... 

Talvez, amigos, talvez isso nos salve. 
(Filipe Couto)

domingo, 16 de novembro de 2014

Poema 205

Poeminha pra tarde de sábado com chuva

Deve haver formas 
menos duras de se expor 
ao ridículo... 

Mas, não... 

Sou desses que deixa 
o coração (logo ele!) todo à mostra, 
pagando mico...
(Filipe Couto)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poema 204

Sou pouquíssimo esperto para o mundo cibernético: 
clico onde não devo, troco teclas, interrompo conversas... 
nem ler todos os meus emails eu consigo. 

Só fico à vontade mesmo quando estou apenas comigo. 
Sozinho em frente à tela - a folha do word aberta -,
derramo um pouco do meu dia em palavras, em ideias. 

O silêncio me escuta bem e sabe o que eu sinto. 
E, nesse instante, não sou mais um completo imbecil 
tentando conectar meu computador à rede wi-fi interna: 

sou poeta.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Poema 203

Nossa Fotografia (poema em três movimentos) 
1. 
Esta fotografia de nós dois, 
emoldurada naquela janela infinita - que você mesma fez, 
com ripas de madeira e tinta - assombra-me os pesadelos, noite e dia. 

Lembro que o fotógrafo fitou-nos por longos instantes, sem bater: 
pode ter sido a falta de jeito com a sua máquina, 
pode ter se confundido com aquele céu azul, tão domingo, 
pode ter ficado bobo com seu sorriso, 
ou até com meus olhos - a seu lado tão vivos. 

Nunca vou saber. Mas, cá entre nós, é preciso? 

A revelação cuidadosa (as revelações não devem ser sempre assim?) 
e a química envolvida traduziram com perfeição no papel a cena: 
lá estamos nós de novo, sob o céu mais que azul, 
seus lábios e meus olhos rindo, como se fosse domingo. 

2.
Hoje, mergulhado na janela infinita 
que você mesma fez com madeira e tinta, fico a pensar: 
fosse a foto tremida, teria eu coragem para largar 
essa paisagem, essa vista e voltar à vida? 

Estivesse escura, sem foco, com o dedo do fotógrafo por cima, 
eu conseguiria parar de contemplá-la? Eu me salvaria? 

"Não", responde-me o coração depois de um sussurro da memória vadia. 

Porque não importa o filtro que se use ou a mais alta tecnologia: 
lá, na fotografia, nítida ou embaciada, clara ou fria, 
há uma perda que não se vê, mas que (pelo menos você) já sentia. 

Era uma época em que você sorria, e eu acreditava 
que era eu - apenas eu - que lhe dava essa alegria. 

3. 
E fico preso à janela - a que você fez, lembra? de madeira e tinta? - 
tentando entender quando e por que a perdi; 
em que lugar se escondeu a magia. 
(Filipe Couto)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Poema 202

Da vida de verdade - essa pra valer mesmo - 
sei quase nada, Coisa Amada. 

Desconfio de algumas coisas, no entanto: 
sei que deve haver algum parque ainda verde num canto, 
um peito - sem medo, ainda aberto - me esperando, 
uma chuva, para fazer brotar da terra, 
num pranto de descoberta, um novo mundo. 

Mas nada disso é certo, Coisa Amada. 
Tudo te espera, sem saber se a tua volta (a tua chegada) é certa. 
Hoje mesmo fez um sol agudo, que me machucou muito, 
e que fez do solo algo um pouco menos fecundo. 
Admito que houve uma brisa em algum ponto no meio tarde, 
mas ela - tão fraca - nem levou sonhos ao longe, nem aliviou o que lá no fundo arde. 

Será que tens a chave de tudo, Coisa Amada? Serás tu a brisa certa, 
o parque verde, o peito aberto, a chuva fecunda, o pranto da descoberta? 

Creio nisso e aguardo o futuro, sem pressa. 
Sim, correrão dos teus olhos algumas lágrimas, quando for preciso; 
sim, teu corpo todo vai se estremecer em dias de riso. 
És tu, Coisa Amada, a força que movimenta o mundo (o meu mundo); 
E tu - só tu - sabes disso há muito: 

desde que renasci ao te ver; 
desde o início do tudo.
(Filipe Couto)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Poema 201

No fundo dos meus olhos, 
há uma imagem que não se decifra ao espelho. 

Sei que é algo leve e triste, sem nome ou endereço; 
algo sozinho; sozinho contra o mundo inteiro. 

Sei também que às vezes é dançarino 
e se apega ao pouco ritmo que bate em meu peito; 

outras vezes é uma luz fraca, 
que luta, mas se apaga atrás das pálpebras. 

Sei, por fim, que a amo, 
mesmo que ela não se revele ou se entregue; 

eu a amo na simplicidade do não saber, nem ter; 
naquele ambíguo espaço em que a cabeça é pouca 

e a alma é tanta, 
que cabem, juntos, o medo e a esperança.
(Filipe Couto)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Poema 200

Ainda bem, 
ainda bem que resistem por aí os estabanados, 
tropeçando em buracos, sem medo de rir de si mesmos 
quando percebem que pegaram o caminho errado. 

Ainda bem, amigos, 
ainda bem que existem por aí os amantes, 
que, por furor, buscam lábios e encontram dentes, 
e se descabelam todos, sem ligar para os passantes. 

Ainda bem, ainda bem que estão por aí os que vadiam, 
os que erram, os que não se deram bem na vida, os que cometeram perjúrio, 
falaram impropérios, os que se arrependem e (não) se consertam. 

Ainda bem, meu Deus, 
ainda bem que há, neste mundo cada vez mais raro, 
pessoas que choram e têm medo, 

pessoas que são pessoas de fato.
(Filipe Couto)

domingo, 19 de outubro de 2014

Poema 199

É que sou todo desencontro, Coisa Amada... 

No silêncio, mais eu ouço; 
no vazio, mais eu tenho; 
no escuro, não tateio; 
no erro, sou perfeito. 

Todo dia, Coisa Amada, corro para meu próprio abismo, 
pensando estar ao encontro dos teus braços. 

Por isso, preciso tanto de poemas: 
eles me algemam inteiro a ti, 

e viro pássaro.
(Filipe Couto)

sábado, 27 de setembro de 2014

Poema 198

1. 
Empaquei meu poema num ponto. 
À esquerda, o discurso posto, já morto, 
e, como todo morto, incompleto 

(que vida e morte são duas faces 
do mesmíssimo mistério). 

2.
À direita, neblina. Só neblina. 

 Esperar que ela se desfaça, 
e a ideia clara irrompa precisa? 

Prosseguir, pé ante pé, com cuidado, 
evitando e aguentando possíveis buracos? 

Ou entregar-se à névoa, 
fundir-se a ela 

e viver em estado de vírgula, 
sempre à espera? 

3. 
Quanta metafísica, meu Deus... 
E eu só queria nesta tarde fria 
um pouco mais de poesia... 
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Poema 197

Há dias (muitos) em que a pedra 
pode ser muro (fortaleza infalível) 

deixando longe (em tom de ilha) 
a fantasia que nos parecia possível. 

Mas sobram pedras e pedras para proteger 
o silêncio do que não se deve despertar; 

pedras para defender no peito 
o amigo mais inimigo, íntimo: 

o amor que não pode ser destruído, 
o amor que não se deixa amar.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Poema 196

Há uma porta 
no meio do sonho, 
a sete chaves guardada. 

Dois pesadelos a vigiam de longe: 
sempre que eu me aproximo, 
eles tratam de afastá-la. 

Eis a trama formada. Do lado de cá não 
existe nada: perdi endereço, nome, rosto e telefone, 
minha estante de livros, meus instantes de gala. 

Atravessar essa porta em mim conservada 
é, pois, a esperança de um novo começo, 
em outra estrada. Então ponho-me à cama 

disposto a não mais acordar até encontrá-la 
 e enfrentar seus protetores com uma espada 
 no que restou do meu próprio sangue forjada. 

Mas o sonho não aparece no sono: ele vem 
quando os olhos cansados, ainda abertos, 
lavam a si mesmos na madrugada. 

Então desarmado, de mim mesmo abandonado, 
vejo surgir um novo dia - que não é novo, nem é dia - 
e a porta lentamente (bem à minha frente) 

mais uma vez se apaga.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Intervalo de prosa

Ela tinha cabelos longos e longos.

Quando os penteava, volta meia voavam alguns sonhos pela janela e viam-se príncipes e princesas se misturando às estrelas.

Perguntei se ela não poderia me ceder um ou outro devaneio para compensar essa minha falta de jeito com o abstrato.

E ela me respondeu: "Não se dá um sonho de travessia a quem anseia apenas pelo porto. Meus sonhos são meus, e ninguém pode ser tolo de achar que eles cabem em qualquer outro corpo."

Resignado, colhi meus cacos. Colei-os. Sem querer, formei um caleidoscópio, que me mostrou a vida de um novo jeito.

Bom ou ruim? Não sei. O olho não é mais o mesmo. É outro.
(Filipe Couto)

domingo, 31 de agosto de 2014

Poema 195

Será que em algum lugar do mundo 
há alguém a pensar o mesmo que penso agora? 

E de que adianta pensar, 
se nenhuma palavra traduz o que cala? 

Existe um tempo em que só se colhe 
o que não se plantou: 

 o desejo (preso) manda beijos, abraços 
e despeja (para todos os lados) 

em vez de fábulas, 
mágoas; 

em vez de final feliz, 
a vida sem sal que (burramente) se quis.
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Poema 194

Li no jornal que amanhã talvez dê praia, 
e ouvi meu horóscopo no rádio: "Geminianos, fiquem animados! 
Grana alta e mulher amada vão surgir num piscar de olhos!" 

Era dia de consulta com a terapeuta, 
e ela me garantiu que, sim, a felicidade existe, 
que a vida é uma beleza e que estou no caminho certo para tê-la. 

Na volta pra casa, não peguei um sinal fechado. 
Estacionei o carro, desci para comprar um guaraná gelado 
e vi no poste um cartaz em que estava sentenciado: 

"Mapa astral, leitura de mão, jogo de búzios, 
apelo ao santo: é tudo a mesma merda. 
Ninguém adivinha o que a vida nos reserva. 

Por isso, amigo, não ouça ninguém, não compre barulho, 
não acredite em promessas: não existe destino ou futuro. 
Acredite: amanhã, o que pintar é lucro!" 

Agora, já no quarto, tomando aquele uísque 
doze anos reservado para festas, rasguei a última foto dela 
e escondi a esperança num poço; num poço sem fundo. 

E, amanhã, poeta do poste, garanto: 
meu dia será maravilhoso. 
E único.
(por Filipe Couto)

domingo, 27 de julho de 2014

Poema 193

Meu dia é longo, como a tua ausência:

caminho numa sucessão de sóis sem fim, 
com pés cortados por espinhos de memória, 
rumo a um sonho que sempre se afasta de mim. 

É que tens, Amor, todas as estrelas nos olhos, 
e luas e cantigas no teu doce colo. 

Sem ti, não adormeço, nem amanheço. 
E nem sei se existo.
(por Filipe Couto)

sábado, 26 de julho de 2014

Poema 192

Ainda agora 
(ainda agora, amigos meus) 
foi-se embora alguma coisa de mim. 

Não deixou bilhete, nem grito: 
apenas vazio (seria abismo?) 
e um sábado, de coração aflito. 

Sei que levou consigo algo mais, 
algo precioso, que ainda não percebo, 
mas sinto. 

Por isso, tranco portas e janelas, 
ergo fossos e muros, 
apago sol e lua: 

Numa outra fuga, podem me levar tudo, 
e não restar nada de mim mesmo. 
Ou dela. 
(por Filipe Couto)

sábado, 19 de julho de 2014

Poema 191

Certa vez, arrumando meu sobrinho, 
ajudei-o a colocar uma camisa 
antes que ele fosse embora. 

A camisa já era pequena; 
menor ainda a gola. 

E, por alguns segundos (mínimos) fiquei sem ver seu rosto 
e vi seu esforço para emergir do escuro 
que eu, para protegê-lo, havia imposto. 

Pensei tê-lo machucado, arranhado, 
e nervoso pedi desculpas e repeti quanto ele era amado. 

Sei que você, que me lê, 
deve estar pensando "quanto desespero 
por um troço tão bobo..." 

E eu te pergunto, amigo, 
quando se ama, como não ser louco? 
(por Filipe Couto)

domingo, 6 de julho de 2014

Poema 190

Depois de tantos anos confiando em Deus
e em sua infinita sabedoria,
eis que a Vida me reserva uma noite de sábado,
com estrelas, mas sem Amor; com céu limpo, mas sem poesia.

A lua, dura e curva, hoje mente:
aguça os sentidos (cheiro, peso, cor) e me deixa sozinho,
sem destino, sem equilíbrio, sem nada a meu lado
para comigo deitar sob tanto perigo.

De concreto, tenho apenas estas teclas
que aperto, como se delas pudesse extrair meu próprio sangue,
mas donde tiro apenas palavras, que circulam
o buraco negro que carrega meu nome.

Palavras que somem no extremo instante,
deixando-me a ilusão da companhia,
e o silêncio de mais uma noite.

Um silêncio que hoje é mais denso - muito mais denso -
do que jamais fora antes.
(por Filipe Couto)

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Poema 189

O tempo 
não é uma flecha 
(reta, rumo a um alvo preciso). 

É antes um laço, 
que une pontos afastados 
de uma mesma corda. 

Deito-me e ao olhar o teto (do quarto, de mim) 
vejo um sorriso que desabrocha 
no exato instante em que se desfaz. 

E eis-me de novo preso, 
atado à saudade 
que resiste ao 'nunca mais'. 

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Poema 188

Olho para o chão com frequência 
e caminho lento, 

como convém a um homem 
que busca nas frestas das calçadas 
uma pequena flor, um musgo que seja, 

uma forma de vida qualquer 
com coragem de resistir e nascer 
em meio à frieza dos seres acelerados. 

Quem me vê pelo vidro dos carros 
acha-me triste... 

Eles não sabem o quanto de vida 
busco em cada passo. 
(Filipe Couto)

sábado, 7 de junho de 2014

Poema 187

Mentias que meus olhos te afogavam, 
e eu cria. 
 
Pensava ser eu toda a água, 
suficiente para a sua sede-vida. 

Hoje, me vês, e estás saciada.

O que fazer, então, com minha existência: 
tão tua e líquida? 
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Poema 186

É noite, 
e um punhal doce 
crava em mim uma ideia vadia, 
perdida no vento. 

E, em vez de sangue, Amor, 
de mim escorriam flores. 

Escorriam flores.
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Poema 185

Nada tenho a lhes contar hoje: 
passei o dia preso, 
amarrado às cordas de mim mesmo. 

Houve só um momento - 
eram duas ou três da tarde - 
em que me subiu um peso enorme no peito. 

Foi quando abri meu armário 
e vi um casaco que há muito não uso. 
Tentei-o. Não me coube. 

Mas ele ainda guardava 
meu cheiro de outra época: 

senti-lo me fez de novo cavaleiro 
cortejando sua amada donzela. 

Guardei o corpo que já foi meu 
em meio a tantos outros, que também já passaram, 
no mesmo armário e me deitei. 

Hoje nada aconteceu. 
Passei o dia preso, 
amarrado às cordas de mim mesmo. 
(por Filipe Couto)

domingo, 20 de abril de 2014

Poema 184

Páscoa

Nesta manhã de domingo, 
como em qualquer domingo, 
sento-me à mesa da sala para mais um desjejum:

as mesmas preocupações de sempre, 
as mesmas migalhas de sempre 
caem sobre o prato onde, agora, tirita uma luz. 

(Sim, uma luz.)

Colho-a, de imediato, como quem toma uma criança 
aos braços, e me pergunto: "De onde ela veio?" 

Confiro as janelas: fechadas. 
As lâmpadas: apagadas.

(Será que ela sempre esteve aqui?) 

Nesse instante lembro que tantas vezes fui fraco e falho, 
tantas vezes deixei meu coração tolamente apertado 
e fiz - de tudo que era claro - uma imensa noite...

Permita-me, então, Senhor, renascer contigo 
e viver o dia, como se fosse interminável, 
e viver o dia, como se acabasse hoje. 
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Poema 183

Cláudia da Silva Ferreira 
era a Cacau. 

Mãe de oito filhos: 
quatro de seu ventre, 
quatro outros que seu coração generoso 
(maior que o meu, maior que o seu) 
felizmente acolheu. 

Tinha emprego, CPF, 
RG e sonhos 
(como eu, como você). 

Tinha também seis reais, 
três para o pão, 
três para a mortadela 
(menos que eu, menos que você), 

mas não teve tempo para cruzar 
as ruas da cidadela em que vivia, 
onde gritos e tiros são fiéis companhias. 

Cláudia da Silva Ferreira 
era 
para aqueles polícias 

menos importante que um criminoso, 
um traficante. 

Há muitas Cláudias que surgem e somem, 
como cometas de sangue rasgando o céu do Rio. 

E mesmo estarrecidos, só contemplamos - passivos - o espetáculo, 
sem entender direito seu roteiro, seus atores, o drama, a trama, 

enquanto aguardamos - bovinamente - a próxima sessão da semana.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poema 182

Porque existes, Amor, vigio 
e preparo meu corpo 
para te receber: 

sentidos aguçados, lábios 
prontos para que possas deitar, 
morrer, viver em mim. 

Depois do amanhecer, 
guardo tudo com cuidado, 
cada sonho num lugar. 

Despido de ti, saio ao mundo 
sem medo de ir além. 

Porque sei que existes, Amor. 
Não se vens. 

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Poema 181

O povo não é feito de previsíveis ondas, 
composto pelas mesmas águas ritmadas. 

O povo mora ao fundo - de nós, do mundo - 
e pouco é ouvido por quem está na praia, surdo. 

O povo não é paisagem ou fotografia; 
é movimento eriçado, é força disruptiva. 

O povo está (acredito) em constante vigília 
e pronto para desmascarar a todos. 

Um dia. 

(por Filipe Couto)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Poema 180

A Vida e eu - poema em três movimentos 

1. 
Nesta noite abafada de verão carioca, 
sentamos, à mesa de um bar, a Vida e eu. 

Ela (tensa) pede uma cerveja leve; eu amarga, 
e logo tentamos decifrar os pequenos sinais 
que vão revelar o que queremos um do outro. 

Sobre a mesa posta, repousa uma porção farta de memórias, 
salteadas na chapa com dor, alho, sal e alma,
enquanto os copos, com espumas e estrelas, unem céu e mar. 


2. 
Aos poucos já nos pegamos rindo à toa, 
e, de tão natural, já nem percebemos nossas presenças, 
no desenrolar dos batuques, que ecoam por ali . 

O Tempo, no entanto, vai se encarregando de nos colocar 
frente a frente, intimando-nos a dançar juntos uma gafieira 
que acabou de começar. E eu vou. 

De vez em quando erro uns passos, 
piso sem querer num ou noutro calo, 
mas ela – a Vida – continua alegre, olhando pra mim. 

Ao sentarmos novamente, exaustos, 
a cerveja amarga e as memórias já não 
nos servem mais, nem à discussão, nem ao consumo. 


3. 
Mas, na mesa ao lado, olhos fixos no horizonte, 
há uma Moça, de coração pulsante e vermelho. 
E agora é a própria Vida que me empurra e grita: 

 – Depois descansa, rapaz! 
Não perca esse coração: vá conhecê-lo! 
E, mais uma vez, mesmo sem jeito, eu vou. 

(por Filipe Couto)

sábado, 18 de janeiro de 2014

Poema 179

Há um mar em tudo que me rodeia, 
uma lua perdida no espaço, 
uma esperança que anima o horizonte 
e uma lágrima em tudo que faço. 

Nas águas que em mim e de mim correm, 
prossigo, profundamente afogado, 
à mercê dos caprichos do tempo, 
contemplando - vivo - outros naufrágios. 

Recolho os tesouros de tudo que vejo 
e os canto, quando emerjo num porto afastado. 
Depois, mergulho, de novo inteiro,
a fazer deste peito meu barco. 
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Poema 178

De que 
é feito o amor? 

Que matéria é essa 
de tantas camadas e texturas, 
surda às palavras que a tentam traduzir? 

Será esta a receita? 
Um punhado de receio, três gotas de instante, 
pinceladas de especiarias e segredos, 
forma untada de desejo, forno numa altura delirante? 

Pouco importa o que se ama; 
importa saber se o gosto persiste, 
verdadeiro, fiel a si mesmo. 

Porque o amor não é princípio, nem fim; 
é meio. 

(por Filipe Couto)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Poema 177

O céu de janeiro, 
no Rio, 
ora derrama azul, 
ora nos abraça cinza, 

e as mais das vezes nos embaralha a vista 
numa sucessão de púrpuras, limas e orquídeas. 

Mas o céu do Rio, 
em janeiro, 
também sabe ser negro,

cor que – lá de cima – mede faltas, distâncias, ausências 
e com que se pode matar a morte 

porque, quando não há nada, tudo se inventa.

(por Filipe Couto)