quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Poema 176

Existe uma ferida 
na noite de hoje. 

Viva. 

(Quando o poema me anoitece, 
sinto-a.)

E cada gota de sonho 
enxotado, exaurido 
que minha lágrima 
sobre ela pinga, 

não me traz alívio. 

Ao contrário, 
é nesse instante
que tudo que há de mim 

grita. 
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Poema 175

O que é o amor senão 
o encontro do lápis com a folha branca; 

não do lápis pensado - preso a uma mão opressora,
certa do desenho - cuidadoso para não derramar
uma gota de sílaba ou de sentido fora do contorno; 

mas do lápis que, imprevisível em seu curso, 
projeta formas e linhas e retas que não existem, 
e deixa a própria folha (tão branca) sem rumo. 

O poema - lápis e papel em vida - só termina (começaria?)
quando aquele leitor ranzinza, que busca a verdade de tudo,
 
se perde mais e mais ainda.
(por Filipe Couto)

domingo, 15 de setembro de 2013

Poema 174

Depois de tantos dias, tantas noites, 
vem de novo aquela ideia fixa 
escravizar-me com seu açoite. 

Para tentar romper esse grilhão, 
grito: "Não, não posso mais vê-la!",
"Amanhã mesmo, começo a esquecê-la!" 

Armo-me, então, para o conflito. 
Reúno forças e fico à espreita, 
esperando que ela, de novo, apareça. 

(Enquanto aguardo, me repito: 
"É a última vez que passo por isso; 
mato essa ideia e tudo está resolvido".) 

Sete mil noites e sete mil dias
já se passaram (meu coração 
em permanente fome e vigília),

e a ideia não aparece;
a luta (como sempre) se adia.

Onde, meu Deus, ela se esconde?
O que pretende? Por que se distancia?

É na ausência que ela se torna mais forte,
e, sem que eu perceba, não se trata mais
de uma inimiga a ser por mim combatida.

Pelo contrário:

eu sou dela, e ela é minha.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Poema 173

Neruda, numa noite como esta, 
depois de tantos sinais fechados, 
de tantas buzinas tentando mover o tráfego, 
de tanta fumaça embaçando sonhos, diálogos, 

poderia escrever versos ainda mais tristes que aqueles de outrora: 
"A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros lá ao longe". 

Porque hoje não há estrelas, nem azuis, e os astros 
são mentiras criadas por alguns malandros,
que andam enganando tantos moços e moças 
com essa fantasia de prever destinos. 

Hoje, na profusão das coisas acontecidas, 
a noite se fez mais fria. 

E quem tirita
(com a alma em fogo e agonia)
sou eu. 
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Poema 172

Coisa amada – poema em três movimentos

1.
Por mais que eu me passe a limpo 
em poemas e sonhos, 

não te encontro, minha Coisa Amada
meu labirinto, meu trabalho de Sísifo.
 

Então, te invento, 
te crio.

2.
Diga: como saber quem é você,
se eu sequer sei quem sou?

(O tempo que vivo hoje é igual
a outro que passou. Mas qual?)

Recolho pelo chão roupas e dores
que são minhas, e não reconheço.

Tateio um escuro
de mim, Coisa Amada,

e tenho medo.


3.
Somos dedos da mesma mão,
filhos do mesmo delírio.

Somos um com o outro, Coisa Amada,
Quixote e Sancho contra gigantes

(e moinhos).

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Poema 171

Nesta noite alta 
em que cada estrela é uma surpresa aos olhos, 

finalmente entendo que viver é isto: 
não procurar sentido. 

Pois que o sentido rápido se escapa nas tramas das mensagens, 
na timidez dos olhares, nos sorrisos escondidos. 

E o viver é mais que isso; 
é mais que caçar o vento: é amá-lo, 

ainda que ele só nos bagunce os cabelos, 
ainda que só nos deixe ciscos. 

É nosso destino (seria vício?) 
esse amar destrambelhado e irresponsável, 
esse compromisso de papel passado com o imprevisível. 

Mesmo que muito doa, viver 
é isso.
(por Filipe Couto)

sábado, 17 de agosto de 2013

Poema 170

Insônia

Há no insone algo de semente, 
um mistério encerrado em claustro 
a se bater contra as paredes do sono, 
em meio a tudo que dorme indiferente. 

É dessa semente esquecida pelo tempo 
(e também dele filha) 
que o insone se alimenta: fruto que não existe, 
sem valor para o corpo, sem gosto para alma ou língua. 

E é dentro dessa substância 
sem carne, pele, cor, sabor e vida 
que já reside uma nova semente, 
atenta para ser colhida; 

semente fiel à sua natureza, 
sempre acordada, 
pronta para, das nossas entranhas, 
ser explodida.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Poema 169

O poeta olha o Facebook

Ela era tão branca e tão linda, 
seus olhos tão claros, tão vivos, 
os braços abertos para o infinito, 
o sorriso leve, a cabeça erguida. 

Mas, para que ela fosse esse anjo de romaria, 
foram necessárias mãos calejadas, pés rachados, 
sonhos roubados, amores calados e choros contidos. 

Foram pretos - de beiços largos - que por séculos a fio 
serviram (escravos) aos que se disseram escolhidos 
para serem senhores de si e de tantos outros já nascidos. 

Foram tantas as vidas desperdiçadas e violadas, 
tantas as vidas que poderiam ter sido, 

para que ela hoje pudesse ser 
essa pintura - tão curtida e comentada -
que olha o mundo com o coração vazio.

(por Filipe Couto)

sábado, 10 de agosto de 2013

Poema 168

A água e a terra - meditação em quatro poemas 

1. 
Desnudo-me num novo jogo 
em que não sou mais eu 
(nome e corpo carregado de promessas) 
mas outro. 

2. 
Ser tantos e tão poucos, 
numa sucessão infinda de seres múltiplos e únicos, 
ausente de destino, 

como rio que se desloca imóvel, 
esquecido do que traz ou trouxe. 

3. 
Mas de que adianta saber-se água 
se o mundo quer terra? 

Vou-me. Passo. 
À frente, ninguém me espera. 

4.  
Antes que eu me perca, 
antes que eu nos perca nessa sucessão de mim, 
bebe-me inteiro, amor.

E se não puder
(por já estar saciada a sede)

mergulha-me, transborda-me para a tua terra 
e deixa-me ser parte daquilo que te nutre. 

E quando surgirem flores, amor, 
colhe... colhe o que de mim ainda resta.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 9 de julho de 2013

Poema 167

Papai, tem uma moça estranha lá fora. Foi o vento que trouxe. Abro a porta? 
– Pergunte primeiro de onde vem, pra onde vai, o que quer, o que traz. 

Papai, pergunto, e ela não me diz nada. Pára, e sorri com os olhos, clareia o que é madrugada. Devo chamá-la? 
– Mande-a embora... Que coisa posso querer com alguém trazido pelo vento? Que não gosta de palavras?

Meu pai gostava de tudo claro e certo; 
eu gostava de mistério, 
de fazer sombra ganhar asa. 

Ainda hoje, quando venta, 
faço de conta que é comigo
e espio, menino, a janela: 

quem sabe ela ainda me espera? 
(por Filipe Couto)

terça-feira, 30 de abril de 2013

Poema 166

Uma releitura de "Life of Pi" em quatro movimentos

1.  
Era ainda alta a madrugada 
quando, num barco, se posta 
à minha frente um tigre-de-bengala. 

Ciente de sua força, ele marca 
seu espaço: rosna, avança, grita, 
como se eu já não estivesse apavorado. 

2. 
Como dividir um barco com um ser, 
sem que se possa conhecê-lo ou tocá-lo? 

Um tigre é antes distância e deserto: 
mesmo perto, não se pode alcançá-lo. 

3. 
Existe um fascínio macabro naquilo 
que não se pode ter, nos olhos a serem 
decifrados, nos pelos sempre eriçados,

naquilo que
em vez de nos matar
nos deixa cruelmente paralisados.

4. 
E perdemos tanto tempo e tanta vida 
com esses tigres que se postam ao nosso lado 

que esquecemos que nos sustenta neste mar 
a inefável leveza de um barco. 
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Poema 165

Não tem nome este suspiro 
lavado de lágrimas, 

nem se pode reconstruir com palavras 
os carinhos que o verão levou. 

Mas que importa um nome, 
se no céu clandestino que hoje sobre mim desaba 
há tantas nuvens, tantos calores e perfumes? 

Seria um nome capaz de controlar a queda 
deste corpo de vigas carcomidas 
e veias abertas? 

Um nome se inventa: 
te chamo “saudade”, “bobeira”, 
“amor”, “perigo”, “vida”. 

Mas não se inventa este suspiro 
lavado de lágrimas, 

que, nesta noite, 
me faz companhia.
(por Filipe Couto)

sábado, 2 de março de 2013

Poema 164

Pela janela do meu quarto, passarão dias azuis
com gaivotas abertas como velas ao mar.

E haverá também horas escuras e graves,
de ar partido por silêncios e tempestades.

Mas até que um doce e antigo vento
te sopre de volta, eu estarei aqui;

enquanto um abraço puder (nos) amanhecer
e uma palavra, como um pássaro,
puder te trazer,

eu estarei aqui.

                          Sozinho. 


                                         Com você. 
(por Filipe Couto)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Poema 163

Saibam quantos estes meus versos virem
que não desistimos da luta;

que ainda há um vento que sopra à noite
espalhando prenúncios pelas ruas;

que nos tambores de minha cidade
batem em compasso dores e alegrias
(as crianças nos sinais e o samba da nossa Vila);

que dentro da gente da minha terra
cresce um monstro, com olhos enormes (em alerta),
a devorar aqueles zumbis nos sofás, diante das tevês.

Porque à vida não se nega uma chance,
e não será deles uma gota do nosso sangue,

enquanto um sorriso puder nos comover.

(por Filipe Couto)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Poema 162

Não, eu não posso mais. 
Não de novo.
Avisem a ela.

Expliquem que agora 
sou eu que estou em voo,

e não posso encontrá-la. 
Não olho a olho.

Supliquem para que não me chame,
que meu corpo (sonho e sangue)
não tem medo do que aconteceu (antes).

Façam, amigos, façam das suas a minha voz 
(hoje perdida em algum canto, em algum pranto)

e gritem e gritem que para sempre serei dela
e que por isso é que preciso partir
e me tornar outro.

Porque eu não posso mais.

Não de novo.
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Poema 161

Novamente as horas passam 
sem propósito ou escolha, 

perdidas, 
imbricadas umas nas outras. 

Alheias ao que despertam ou cessam, 
ao antes e ao depois, 

as horas brincam de roda, 
se devoram, se renovam,

enquanto na parede da sala resiste 
(embora amarelada) 
uma foto, 

tão só lembrança de nós dois. 
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Poema 160

A palavra e o sentido

Sobre a mesa já velha e cansada, pousa o poeta
papel e silêncio.

À espera do verso, busca 
aquelas memórias mais tímidas (e se diverte com elas). 
Então, ele puxa dali um fio de história e a desenrola até poder 
amarrar um sentido.

Mas poesia não é sentido.

A poesia não está no tijolo sobre tijolo (previsível edifício,
como a nossa vida bovina de ração, reprodução e rotina).

A poesia só acontece quando um pássaro

foge, 
             sem asas, 
                                 de um poente em chamas;

ou quando se tenta pregar 
                                          o curso de um rio 
ou quando uma pedra 
                                          por ele se encanta.

Cabe ao poeta desamarrar o sentido,
e repousá-lo num escuro tão escuro 
             que é claro e vivo.

Pois só assim também ele pode despertar 
das lembranças e plantar noutro terreno (talvez)
aquele seu primeiro beijo e logo
recolher seu sumo, não por inteiro,

mas até estar forte para 
conseguir respirar apenas silêncio

e enxergar, sem surpresa, 
naquele pouso do papel,

uma boia a salvar a mesa.
(por Filipe Couto)


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Poema 159

Amanhã (poema em dois movimentos)

1.
Amanhã não será outro dia,

pois que a vida de verdade (não esta fingida
das fotos, das festas, dos comerciais de margarina) 

não tem começo, nem fim.

Continuaremos, pasteurizados, em marcha,
a dar de cara com os mesmos erros e acertos,

prontos para consumo imediato,
em busca da alegria que nos prometeram.

2.
Antes de me recolher, no entanto, posto-me 
em frente ao espelho, e não me reconheço:

"– Quem é esse nas minhas roupas,
usando meu nome, meu rosto,
deixando palavras na minha boca...?
Quem é? Que coisa quer, de onde vem?"

Sem resposta, maquinalmente, programo 
o despertador (uso uma composição de Chopin)
e me ponho a dormir.

Quem sabe amanhã?
(por Filipe Couto)





terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Poema 158

A noite e seus perigos (poema em dois movimentos)


1.
Ninguém sabe quando ou onde a vida pode acontecer
(mas todos a procuram, todos a esperam).

Perdida nos passos febris da cidade,
ela passa distraída:
joga-se à frente de um, de outro desvia;

uns a ganham, brincam, enjoam,
outros a perdem (ficam loucos),
e muitos sequer a reconhecem.



2.
Mas, se ninguém sabe onde ou quando, saberia
por quê?

Por que ter essa ferida exposta ao sol 

e ao sal do mundo? 
Por que armar a bomba, tatear o escuro?

No meu quarto
(que poderia ser qualquer quarto deste Rio pintado de gritos),

há uma janela, uma cama

e uma esperança que me sussurra ao ouvido:

" Moço, deixa disso... Dorme pra esquecer..." 

(por Filipe Couto)

sábado, 12 de janeiro de 2013

Poema 157

Foi num sonho (desses que nos pegam 
pelo pé na madrugada) que vi você numa praia 
a contemplar o mar e tudo que mais existe. 

Ali, como a perceber minha presença, 
começou a brincar e a apontar cores 
que ninguém nunca tinha visto, 

e a achar graça do meu espanto, 
enquanto a brisa me abraçava 
com o gosto e o perfume da vida. 

Ficamos os dois assim, juntos, à distância do mundo. 
E você me explicava como são tolas as guerras e a economia, 

e como é absurdo e desumano viver em tanta correria 
para ter o que não se precisa. 

Lado a lado, caminhamos de volta à casa 
(sem mistério, sem peso, sem nada) 

e o sol, em vez de iluminar o caminho, 
só revelava a luz que ele já continha.
(Filipe Couto)