sexta-feira, 17 de abril de 2015

Intervalo de prosa

Faz quase um ano que ela se deu ao mundo. Não aceitou companhia, nem explicou muita coisa. Pegou uma canoa pra navegar entre lágrimas e remou, remou, remou até uma terra firme qualquer, além de qualquer saudade. 

O povo todo se admirou daquela providência. Nem eu, que tão bem a sabia, tinha já me percebido dessa urgência de partida. 

Ela está lá ainda. E ninguém mais pergunta ou assunta sobre o caso. 

Mas eu permaneço: olho mirando uma mudança no movimento das águas. Pois que o tempo é coberto com uma colcha trançada de encontro e desencontro. A vida que se demora passa; a vida que passa se demora. 

Há lá fora, agora, uma esperança de chuva. O cheiro de terra molhada que ela gostava. (Nessa outra terra há também?) 

O rio vai, uma vez mais, estar cheio. 

E se ela, por percebimento, quiser remar de novo, e o barco estiver velho, os braços sem força, os olhos embaçados? 

E, por isso, a dor hoje é enorme, aberta. Uma ferida vermelha que lanço ao céu e se alastra, feito tarde de sol. Farol. 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Poema 235

No fundo, eu não existo. Nem você. 
Existíssemos de verdade não faríamos 
tantas bobagens, não desperdiçaríamos 
tantas oportunidades por motivos bestas. 

"Ah, hoje tô cansado!", "Nossa, como é longe!", 
"Isso não é pra minha idade!", "Se depois 
eu me arrepender, já vai ser tarde!" 

A vida cabe na palma da mão de um mágico 
que a faz desaparecer e ressurgir atrás de uma orelha. 

Tem gente que sequer acha graça; 
tem gente que conhece o truque 
e ainda assim se finge surpresa. 

De qual lado você está? 
É disso que depende sua humana natureza.
(Filipe Couto)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Poema 234

Sofro de um poema que 
não consigo escrever. 
Tenho tema, palavras, 
mas falta coragem: 

colocar no papel vai doer. 

Ai, coração que bate, 
e machuca o peito que quer paz. 
Abro as mil janelas do quarto, 
e ainda assim me falta ar.
(Filipe Couto)