quarta-feira, 23 de abril de 2014

Poema 185

Nada tenho a lhes contar hoje: 
passei o dia preso, 
amarrado às cordas de mim mesmo. 

Houve só um momento - 
eram duas ou três da tarde - 
em que me subiu um peso enorme no peito. 

Foi quando abri meu armário 
e vi um casaco que há muito não uso. 
Tentei-o. Não me coube. 

Mas ele ainda guardava 
meu cheiro de outra época: 

senti-lo me fez de novo cavaleiro 
cortejando sua amada donzela. 

Guardei o corpo que já foi meu 
em meio a tantos outros, que também já passaram, 
no mesmo armário e me deitei. 

Hoje nada aconteceu. 
Passei o dia preso, 
amarrado às cordas de mim mesmo. 
(por Filipe Couto)

domingo, 20 de abril de 2014

Poema 184

Páscoa

Nesta manhã de domingo, 
como em qualquer domingo, 
sento-me à mesa da sala para mais um desjejum:

as mesmas preocupações de sempre, 
as mesmas migalhas de sempre 
caem sobre o prato onde, agora, tirita uma luz. 

(Sim, uma luz.)

Colho-a, de imediato, como quem toma uma criança 
aos braços, e me pergunto: "De onde ela veio?" 

Confiro as janelas: fechadas. 
As lâmpadas: apagadas.

(Será que ela sempre esteve aqui?) 

Nesse instante lembro que tantas vezes fui fraco e falho, 
tantas vezes deixei meu coração tolamente apertado 
e fiz - de tudo que era claro - uma imensa noite...

Permita-me, então, Senhor, renascer contigo 
e viver o dia, como se fosse interminável, 
e viver o dia, como se acabasse hoje. 
(por Filipe Couto)