Nada tenho a lhes contar hoje:
passei o dia preso,
amarrado às cordas de mim mesmo.
Houve só um momento -
eram duas ou três da tarde -
em que me subiu um peso enorme no peito.
Foi quando abri meu armário
e vi um casaco que há muito não uso.
Tentei-o. Não me coube.
Mas ele ainda guardava
meu cheiro de outra época:
senti-lo me fez de novo cavaleiro
cortejando sua amada donzela.
Guardei o corpo que já foi meu
em meio a tantos outros, que também já passaram,
no mesmo armário e me deitei.
Hoje nada aconteceu.
Passei o dia preso,
amarrado às cordas de mim mesmo.
(por Filipe Couto)
Páscoa
Nesta manhã de domingo,
como em qualquer domingo,
sento-me à mesa da sala para mais um desjejum:
as mesmas preocupações de sempre,
as mesmas migalhas de sempre
caem sobre o prato onde, agora, tirita uma luz.
(Sim, uma luz.)
Colho-a, de imediato, como quem toma uma criança
aos braços, e me pergunto: "De onde ela veio?"
Confiro as janelas: fechadas.
As lâmpadas: apagadas.
(Será que ela sempre esteve aqui?)
Nesse instante lembro que tantas vezes fui fraco e falho,
tantas vezes deixei meu coração tolamente apertado
e fiz - de tudo que era claro - uma imensa noite...
Permita-me, então, Senhor, renascer contigo
e viver o dia, como se fosse interminável,
e viver o dia, como se acabasse hoje.
(por Filipe Couto)