quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Poema 160

A palavra e o sentido

Sobre a mesa já velha e cansada, pousa o poeta
papel e silêncio.

À espera do verso, busca 
aquelas memórias mais tímidas (e se diverte com elas). 
Então, ele puxa dali um fio de história e a desenrola até poder 
amarrar um sentido.

Mas poesia não é sentido.

A poesia não está no tijolo sobre tijolo (previsível edifício,
como a nossa vida bovina de ração, reprodução e rotina).

A poesia só acontece quando um pássaro

foge, 
             sem asas, 
                                 de um poente em chamas;

ou quando se tenta pregar 
                                          o curso de um rio 
ou quando uma pedra 
                                          por ele se encanta.

Cabe ao poeta desamarrar o sentido,
e repousá-lo num escuro tão escuro 
             que é claro e vivo.

Pois só assim também ele pode despertar 
das lembranças e plantar noutro terreno (talvez)
aquele seu primeiro beijo e logo
recolher seu sumo, não por inteiro,

mas até estar forte para 
conseguir respirar apenas silêncio

e enxergar, sem surpresa, 
naquele pouso do papel,

uma boia a salvar a mesa.
(por Filipe Couto)


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Poema 159

Amanhã (poema em dois movimentos)

1.
Amanhã não será outro dia,

pois que a vida de verdade (não esta fingida
das fotos, das festas, dos comerciais de margarina) 

não tem começo, nem fim.

Continuaremos, pasteurizados, em marcha,
a dar de cara com os mesmos erros e acertos,

prontos para consumo imediato,
em busca da alegria que nos prometeram.

2.
Antes de me recolher, no entanto, posto-me 
em frente ao espelho, e não me reconheço:

"– Quem é esse nas minhas roupas,
usando meu nome, meu rosto,
deixando palavras na minha boca...?
Quem é? Que coisa quer, de onde vem?"

Sem resposta, maquinalmente, programo 
o despertador (uso uma composição de Chopin)
e me ponho a dormir.

Quem sabe amanhã?
(por Filipe Couto)





terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Poema 158

A noite e seus perigos (poema em dois movimentos)


1.
Ninguém sabe quando ou onde a vida pode acontecer
(mas todos a procuram, todos a esperam).

Perdida nos passos febris da cidade,
ela passa distraída:
joga-se à frente de um, de outro desvia;

uns a ganham, brincam, enjoam,
outros a perdem (ficam loucos),
e muitos sequer a reconhecem.



2.
Mas, se ninguém sabe onde ou quando, saberia
por quê?

Por que ter essa ferida exposta ao sol 

e ao sal do mundo? 
Por que armar a bomba, tatear o escuro?

No meu quarto
(que poderia ser qualquer quarto deste Rio pintado de gritos),

há uma janela, uma cama

e uma esperança que me sussurra ao ouvido:

" Moço, deixa disso... Dorme pra esquecer..." 

(por Filipe Couto)

sábado, 12 de janeiro de 2013

Poema 157

Foi num sonho (desses que nos pegam 
pelo pé na madrugada) que vi você numa praia 
a contemplar o mar e tudo que mais existe. 

Ali, como a perceber minha presença, 
começou a brincar e a apontar cores 
que ninguém nunca tinha visto, 

e a achar graça do meu espanto, 
enquanto a brisa me abraçava 
com o gosto e o perfume da vida. 

Ficamos os dois assim, juntos, à distância do mundo. 
E você me explicava como são tolas as guerras e a economia, 

e como é absurdo e desumano viver em tanta correria 
para ter o que não se precisa. 

Lado a lado, caminhamos de volta à casa 
(sem mistério, sem peso, sem nada) 

e o sol, em vez de iluminar o caminho, 
só revelava a luz que ele já continha.
(Filipe Couto)