A palavra e o sentido
Sobre a mesa já velha e cansada, pousa o poeta
papel e silêncio.
À espera do verso, busca
aquelas memórias mais tímidas (e se diverte com elas).
Então, ele puxa dali um fio de história e a desenrola até poder
amarrar um sentido.
Mas poesia não é sentido.
A poesia não está no tijolo sobre tijolo (previsível edifício,
como a nossa vida bovina de ração, reprodução e rotina).
A poesia só acontece quando um pássaro
foge,
sem asas,
de um poente em chamas;
ou quando se tenta pregar
o curso de um rio
ou quando uma pedra
por ele se encanta.
Cabe ao poeta desamarrar o sentido,
e repousá-lo num escuro tão escuro
que é claro e vivo.
Pois só assim também ele pode despertar
das lembranças e plantar noutro terreno (talvez)
aquele seu primeiro beijo e logo
recolher seu sumo, não por inteiro,
mas até estar forte para
conseguir respirar apenas silêncio
e enxergar, sem surpresa,
naquele pouso do papel,
uma boia a salvar a mesa.
(por Filipe Couto)
Amanhã (poema em dois movimentos)
1.
Amanhã não será outro dia,
pois que a vida de verdade (não esta – fingida –
das fotos, das festas, dos comerciais de margarina)
não tem começo, nem fim.
Continuaremos, pasteurizados, em marcha,
a dar de cara com os mesmos erros e acertos,
prontos para consumo imediato,
em busca da alegria que nos prometeram.
2.
Antes de me recolher, no entanto, posto-me
em frente ao espelho, e não me reconheço:
"– Quem é esse nas minhas roupas,
usando meu nome, meu rosto,
deixando palavras na minha boca...?
Quem é? Que coisa quer, de onde vem?"
Sem resposta, maquinalmente, programo
o despertador (uso uma composição de Chopin)
e me ponho a dormir.
Quem sabe amanhã?
(por Filipe Couto)
A noite e seus perigos (poema em dois movimentos)
1.
Ninguém sabe quando ou onde a vida pode acontecer
(mas todos a procuram, todos a esperam).
Perdida nos passos febris da cidade,
ela passa distraída:
joga-se à frente de um, de outro desvia;
uns a ganham, brincam, enjoam,
outros a perdem (ficam loucos),
e muitos sequer a reconhecem.
2.
Mas, se ninguém sabe onde ou quando, saberia
por quê?
Por que ter essa ferida exposta ao sol
e ao sal do mundo?
Por que armar a bomba, tatear o escuro?
No meu quarto
(que poderia ser qualquer quarto deste Rio pintado de gritos),
há uma janela, uma cama
e uma esperança que me sussurra ao ouvido:
"– Moço, deixa disso... Dorme pra esquecer..."
(por Filipe Couto)
Foi num sonho (desses que nos pegam
pelo pé na madrugada) que vi você numa praia
a contemplar o mar e tudo que mais existe.
Ali, como a perceber minha presença,
começou a brincar e a apontar cores
que ninguém nunca tinha visto,
e a achar graça do meu espanto,
enquanto a brisa me abraçava
com o gosto e o perfume da vida.
Ficamos os dois assim, juntos, à distância do mundo.
E você me explicava como são tolas as guerras e a economia,
e como é absurdo e desumano viver em tanta correria
para ter o que não se precisa.
Lado a lado, caminhamos de volta à casa
(sem mistério, sem peso, sem nada)
e o sol, em vez de iluminar o caminho,
só revelava a luz que ele já continha.
(Filipe Couto)