sábado, 27 de setembro de 2014

Poema 198

1. 
Empaquei meu poema num ponto. 
À esquerda, o discurso posto, já morto, 
e, como todo morto, incompleto 

(que vida e morte são duas faces 
do mesmíssimo mistério). 

2.
À direita, neblina. Só neblina. 

 Esperar que ela se desfaça, 
e a ideia clara irrompa precisa? 

Prosseguir, pé ante pé, com cuidado, 
evitando e aguentando possíveis buracos? 

Ou entregar-se à névoa, 
fundir-se a ela 

e viver em estado de vírgula, 
sempre à espera? 

3. 
Quanta metafísica, meu Deus... 
E eu só queria nesta tarde fria 
um pouco mais de poesia... 
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Poema 197

Há dias (muitos) em que a pedra 
pode ser muro (fortaleza infalível) 

deixando longe (em tom de ilha) 
a fantasia que nos parecia possível. 

Mas sobram pedras e pedras para proteger 
o silêncio do que não se deve despertar; 

pedras para defender no peito 
o amigo mais inimigo, íntimo: 

o amor que não pode ser destruído, 
o amor que não se deixa amar.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Poema 196

Há uma porta 
no meio do sonho, 
a sete chaves guardada. 

Dois pesadelos a vigiam de longe: 
sempre que eu me aproximo, 
eles tratam de afastá-la. 

Eis a trama formada. Do lado de cá não 
existe nada: perdi endereço, nome, rosto e telefone, 
minha estante de livros, meus instantes de gala. 

Atravessar essa porta em mim conservada 
é, pois, a esperança de um novo começo, 
em outra estrada. Então ponho-me à cama 

disposto a não mais acordar até encontrá-la 
 e enfrentar seus protetores com uma espada 
 no que restou do meu próprio sangue forjada. 

Mas o sonho não aparece no sono: ele vem 
quando os olhos cansados, ainda abertos, 
lavam a si mesmos na madrugada. 

Então desarmado, de mim mesmo abandonado, 
vejo surgir um novo dia - que não é novo, nem é dia - 
e a porta lentamente (bem à minha frente) 

mais uma vez se apaga.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Intervalo de prosa

Ela tinha cabelos longos e longos.

Quando os penteava, volta meia voavam alguns sonhos pela janela e viam-se príncipes e princesas se misturando às estrelas.

Perguntei se ela não poderia me ceder um ou outro devaneio para compensar essa minha falta de jeito com o abstrato.

E ela me respondeu: "Não se dá um sonho de travessia a quem anseia apenas pelo porto. Meus sonhos são meus, e ninguém pode ser tolo de achar que eles cabem em qualquer outro corpo."

Resignado, colhi meus cacos. Colei-os. Sem querer, formei um caleidoscópio, que me mostrou a vida de um novo jeito.

Bom ou ruim? Não sei. O olho não é mais o mesmo. É outro.
(Filipe Couto)