segunda-feira, 27 de julho de 2015

Intervalo de prosa

Ele acreditava no Amor. Mas também não acreditava. Entendia-o como essência, mas não como experiência; como teoria, não como fato. Explicou-me:

- Veja você a complicação da coisa. Ela chega todo dia às 16h. Ontem, chegou às 20h. Fiquei preocupado, é claro. Mas o que poderia dizer a ela? "Olha, isso não se faz: você me preocupou...", "Não podia ter me avisado?", "Tá pensando que isso aqui é zona?". Ou talvez agir como se nada houvesse passado: "Vamos comer alguma coisa?". Posso, com delicadeza, dizer o que sinto e, com sabedoria, escolher a intensidade com que o revelo. Mas como saber o grau?

Você pode imaginar que uma cobrança exagerada pode sufocar o outro, e que uma demonstração de naturalidade pode sufocar a mim; então, o melhor é revelar um pouco da minha angústia, sugerindo que algo seja diferente numa próxima vez: "Você chegou! Que bom estar tudo bem; quando for assim, me avisa, só pra que eu não me preocupe?"

Mas e se o outro está precisando na verdade é da minha angústia intensa, pra se sentir protegido e cuidado? E se o outro quer é a naturalidade, por estar com outras pressões, e precisar apenas de companhia? Ele não é aquilo que eu imagino que seja ou aquilo que eu gostaria que fosse. Ele é.

A tragédia, amigo, é que quero dar ao outro aquilo tudo que há em mim, mas sei que não posso, por muito querer bem. Então meço palavras. Sofro, choro, mas evito que me olhem. Se for inevitável que vejam, ponho óculos. Digo estar tudo bem, mas meu corpo diz o contrário: rejeito o toque, o beijo, a conversa carinhosa. Puno-o, por ele não ter a capacidade telepática de ler o que está escrito dentro de mim.

Preciso do "Está tudo bem?", "Aconteceu alguma coisa?", para que o outro reconheça meu esforço em calar, por muito amar. Você sabe: o amor precisa ser visto. Mas, ao fazer isso, estrago o esforço, torno o outro responsável pela minha tristeza exatamente porque não quero responsabilizá-lo por ela.

Anulo-me, para fazer nascer o outro e, ao fazer isso, anulo-o. Liberto-o e o faço refém.

No amor, podemos até ser maduros na teoria, na elaboração do discurso, na percepção do certo e do errado; mas sempre somos crianças na prática. Com a pureza, a falta de jeito, a inconsequência e as limitações que isso traz.

Um emaranhado confuso de contrários.

É isso, amigo: acredito tanto no Amor, que não sei se ele pode existir.

(Filipe Couto)

domingo, 26 de julho de 2015

Poema 243

Acendi há pouco as luzes do quarto,
e não notei alguns de seus vestígios.

Não há mais aquela bagunça que você fazia;
não há mais retratos, roupas, livros.

"O lugar mais sombrio é sempre embaixo
da lâmpada", diz um provérbio chinês antigo.

E lá estava eu diante da tua clara despedida,
sem conseguir enxergar que não sou mais seu;

e que você não é minha.
(Filipe Couto)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Poema 242

Não é brincadeira:
o amor me deixou em carne viva;
qualquer carinho hoje já me dá agonia.

Vá lá:
pode ser que um novo amor me dê outra pele,
e eu enfim consiga aceitar uma ou outra carícia.

Mas é próprio do amor despelar-nos em água quente
para realçar de novo cada uma das nossas feridas.

Então,
só vejo um jeito de escapar dessa armadilha:
achar alguém que nos leve consigo, dentro de si,

que, mesmo em profunda dor ou desencanto,
nos ofereça abrigo e companhia.

(Filipe Couto)

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Poema 241

Acabei de topar com Deus.
Ele ofereceu dois ou três conselhos
e perguntou o que eu queria. Disse-Lhe eu:

"Há um coração em que penso todos os dias
e hoje ele deve estar por aí, perdido em más companhias.

Deus, por mais beijos e apertos que haja,
que todos ela ache sem gosto e sem graça.

E, quando for hora de sair de casa pela manhã
ou de voltar a ela depois da noitada,

que ela respire, Senhor, a primeira luz
por Ti enviada

e, sem perceber,
para dentro de si me traga.

Mais nada".
(Filipe Couto)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Poema 240

HAIKU

Gastei tanto meus
olhos em lágrimas, que hoje
já não enxergo nada.
(Filipe Couto)