Não estava à beira do abismo
quando você me encontrou:
pelo contrário, planava livre sobre
pastos verdejantes, cheios de flores.
Mas existe em todos esse desejo
insaciável e misterioso de pouso,
e eu me dei inteiro, como nunca antes,
para o cuidado delicado do seu beijo.
Amamos juntos. Perdi a intenção do voo:
eram meus seus olhos, era seu meu corpo.
Seus pés e passos levaram-me consigo
a terras que jamais havia visto. Numa delas,
você me largou. Perdoo seu deixar de amar,
Coisa Amada. O amor que você me deu, não.
Não o perdoo.
(Filipe Couto)
Deve haver alguma palavra
que traduza sua doçura.
Procurei no meu peito:
nenhuma...
Além de você, Coisa Amada,
em mim não há mais nada,
senão bruma.
(Filipe Couto)
Estive hoje no aeroporto,
depois de horas tentando alcançá-lo,
para buscar algo que me mandaram.
O coração da cidade me assusta:
fecham-se mais e mais ruas, abrem-se tímidas vistas,
empurram-se edifícios enormes, acima até da lua.
A cidade se espalha,
não como um rio - contido entre margens -,
mas como um mar em ressaca - que avança sobre tudo -
testando seus limites, querendo alcançar o futuro.
No aeroporto,
os painéis apontavam horários e destinos
(lazer, negócios, outros compromissos),
e nenhum trazia meu nome:
"Filipe Couto, 9h, Outro Lado do Mundo,
embarque neste segundo".
É que não sinto nenhuma viagem aqui dentro.
Se trocasse de vida, ela teria a mesma forma:
continuaria essa coisa meio morna em que me vejo.
E muito mais que a cidade
é isso que me toma de medo.
(Filipe Couto)
Hoje, no restaurante,
um casal em silêncio
(bocas preguiçosas comendo).
Eis que erguem os olhos e dizem
um ao outro, ao mesmo tempo:
"- Gostou?"
As palavras se encontraram entre eles,
se amaram até chegar aos ouvidos
e se transformaram depois em sorrisos.
Essas palavras de hoje,
entreouvidas e vistas no restaurante,
jamais saberão que foram como nós dois:
almas gêmeas por um instante.
(Filipe Couto)