1.
Esta fotografia de nós dois,
emoldurada naquela janela infinita - que você mesma fez,
com ripas de madeira e tinta - assombra-me os pesadelos, noite e dia.
Lembro que o fotógrafo fitou-nos por longos instantes, sem bater:
pode ter sido a falta de jeito com a sua máquina,
pode ter se confundido com aquele céu azul, tão domingo,
pode ter ficado bobo com seu sorriso,
ou até com meus olhos - a seu lado tão vivos.
Nunca vou saber. Mas, cá entre nós, é preciso?
A revelação cuidadosa (as revelações não devem ser sempre assim?)
e a química envolvida traduziram com perfeição no papel a cena:
lá estamos nós de novo, sob o céu mais que azul,
seus lábios e meus olhos rindo, como se fosse domingo.
2.
Hoje, mergulhado na janela infinita
que você mesma fez com madeira e tinta, fico a pensar:
fosse a foto tremida, teria eu coragem para largar
essa paisagem, essa vista e voltar à vida?
Estivesse escura, sem foco, com o dedo do fotógrafo por cima,
eu conseguiria parar de contemplá-la? Eu me salvaria?
"Não", responde-me o coração depois de um sussurro da memória vadia.
Porque não importa o filtro que se use ou a mais alta tecnologia:
lá, na fotografia, nítida ou embaciada, clara ou fria,
há uma perda que não se vê, mas que (pelo menos você) já sentia.
Era uma época em que você sorria, e eu acreditava
que era eu - apenas eu - que lhe dava essa alegria.
3.
E fico preso à janela - a que você fez, lembra? de madeira e tinta? -
tentando entender quando e por que a perdi;
em que lugar se escondeu a magia.
(Filipe Couto)
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