terça-feira, 11 de novembro de 2014

Poema 203

Nossa Fotografia (poema em três movimentos) 
1. 
Esta fotografia de nós dois, 
emoldurada naquela janela infinita - que você mesma fez, 
com ripas de madeira e tinta - assombra-me os pesadelos, noite e dia. 

Lembro que o fotógrafo fitou-nos por longos instantes, sem bater: 
pode ter sido a falta de jeito com a sua máquina, 
pode ter se confundido com aquele céu azul, tão domingo, 
pode ter ficado bobo com seu sorriso, 
ou até com meus olhos - a seu lado tão vivos. 

Nunca vou saber. Mas, cá entre nós, é preciso? 

A revelação cuidadosa (as revelações não devem ser sempre assim?) 
e a química envolvida traduziram com perfeição no papel a cena: 
lá estamos nós de novo, sob o céu mais que azul, 
seus lábios e meus olhos rindo, como se fosse domingo. 

2.
Hoje, mergulhado na janela infinita 
que você mesma fez com madeira e tinta, fico a pensar: 
fosse a foto tremida, teria eu coragem para largar 
essa paisagem, essa vista e voltar à vida? 

Estivesse escura, sem foco, com o dedo do fotógrafo por cima, 
eu conseguiria parar de contemplá-la? Eu me salvaria? 

"Não", responde-me o coração depois de um sussurro da memória vadia. 

Porque não importa o filtro que se use ou a mais alta tecnologia: 
lá, na fotografia, nítida ou embaciada, clara ou fria, 
há uma perda que não se vê, mas que (pelo menos você) já sentia. 

Era uma época em que você sorria, e eu acreditava 
que era eu - apenas eu - que lhe dava essa alegria. 

3. 
E fico preso à janela - a que você fez, lembra? de madeira e tinta? - 
tentando entender quando e por que a perdi; 
em que lugar se escondeu a magia. 
(Filipe Couto)

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