O raro vento que sopra
no Rio em chamas de agora
acarinhou os cabelos de uma moça
que conversava com seu namorado,
justo na porta do bar em que eu estava.
Ele não se sentiu enciumado.
Pelo contrário: achou graça
e, com a ponta dos dedos,
ajeitou
um fio ou outro em frente aos lábios dela
e ambos se encontraram, num beijo de novela.
Simples, corriqueiro, tolo. Eu sei.
Mas como me doeu, Coisa Amada,
ver duas almas de mãos dadas,
e não ter mais você.
(Filipe Couto)
– Você tem um ar triste...
(Ela me disse.)
– É que, no momento em que te encontrei, soube também
que já havia te perdido.
Por isso, fico assim: em permanente luto;
por nós, pelo mundo.
Deixo de lado o verão, as praias (sol e céu),
dinheiro, obrigações de filho, de amigo,
e desatino a escrever versos
que jamais serão lidos,
porque jamais os mostrarei.
Sim, sou triste.
E feliz.
É assim que vivo.
O diagnóstico não soa lá muito lógico, eu sei.
Fazer o quê...?
Somos todos únicos: sou a única testemunha
da minha própria loucura.
(Filipe Couto)
Por quase 14 bilhões de anos esperei por ela.
Desde que o universo era apenas brilho,
desde que não havia ainda o 'antes'.
Claro, já houve cometas
rasgando o céu do meu peito;
houve estrelas e estrelas,
em torno das quais gravitei desejos.
Só não houve 'ela':
minha casa, meu planeta,
minha quintessência,
minha constante perfeita
neste Plano sem pé, nem cabeça.
Eu, que já fui
(quem me dera voltar a sê-la...)
matéria densa e acesa.
(Filipe Couto)
Poema de Natal
Era ainda manhã, quando comecei a procurar
o que escrever sobre esta véspera.
Eis que só agora, quase finda a espera,
ocorreu-me que nada se pode dizer.
Sim, nada.
Há algo de maravilhoso e suave no silêncio
que entrecorta os encontros do dia,
as histórias novas e as repetidas,
os risos compartilhados,
os abraços e os beijos de amores, amigos, família.
É nesse breve espaço de espontaneidade genuína,
distante dos presentes, dos protocolos e da hipocrisia,
que mora - e renasce sempre, pleno de alegria -
Deus.
(Filipe Couto)
Era uma tarde quente (dessas que
o Rio nos reserva em dezembro),
e eu respirava mar
quando uma onda se quebrou
bem à minha frente.
Tentei escutá-la, entender
o que, em estrondo, ela dizia.
Nada.
Pedi ajuda a poetas dos mares: Camões,
Pessoa, Cecília, Vicente, Caymmi, Sophia.
Nada.
Tudo que a onda dizia me era inaudível
e afogava minha fantasia:
era um mundo todo novo que se abria,
um mundo tão perigoso que não me deixava alternativa:
prendi-o.
Hoje ele agoniza com porta trancada, chave passada,
n'alguma cela escondida dentro de mim.
Eu, que só quero um mar sereno,
onde meu sonho possa nadar em silêncio
e paz.
(Filipe Couto)
Somos o que somos e o que não somos:
nós somos o que somos e o que parecemos ser.
O lado de fora (da casca, dos olhos, das palavras),
esconde algo tenebroso, horrendo: o lado de dentro.
O lado de fora preenche o mundo (e a Terra é imensa);
o lado de dentro mal cabe em nós mesmos, de tantas tormentas.
Ser o que o outro espera, e não aquilo que se é,
é algo trabalhoso e torturante. Exige disciplina, cuidado,
investimento em máscaras e discursos, exige um estar sempre em alerta,
exige um luxo de recursos que poucos, bem poucos, enxergam ou têm.
Sei que apenar 'ser' - por si, em si - também
não é fácil. Requer, sobretudo, coragem.
Em vez de roupas, acessórios, carros e cargos, para 'ser',
temos que andar, sem medo, despidos, com o coração na mão.
E, se fizerem pouco dele, que bom: a gente passa,
e sobram menos uns babacas na nossa contramão.
(Filipe Couto)
Era tudo escuro e áspero no mundo
quando nos sentamos à mesa - o Amor e eu.
Pedimos os cardápios,
escolhemos bebidas e pratos,
e, aos poucos, à luz de velas,
o Amor foi se tornando suave e claro pra mim.
Ele não era o brilho líquido,
estrelado e espumante, que nos foi servido
para saciar a sede.
Também não era o tempero,
algo amargo, algo doce,
aguçando corpo e desejo.
Lembro-me como se fosse hoje.
Naquela mesa, naquela noite, descobri:
o Amor é sobretudo a espera,
como eu jamais gostaria que fosse.
(Filipe Couto)
A vida
acontece de repente.
E quando ela vem de frente
não há
coração que resista,
nem dor
que aguente.
(Filipe Couto)
Agonia de ter este corpo, e não outro;
de não ser aquele que viveu nossos sonhos,
de jamais ter alçado voos ao teu lado,
de querer ser Ícaro e ter sido Dédalo.
Desespero de não te encontrar à noite
e conseguir repouso nas tuas batalhas;
crer-me cavaleiro nobre, como Quixote,
confortar-te com loucuras de toda sorte.
Aflição de carregar a Arca da Aliança,
de entender a comunicação entre Deus
e homens, mas estar no Egito sem esperança.
Medo de conhecer Heráclito, a real
alternância entre contrários e, depois de nós,
de tudo acabado, sabê-lo tolo e errado.
(Filipe Couto)
Sozinho, no sol da tarde tijucana,
percebo-me não mais à beira do abismo,
mas já completamente abismado.
Não se trata de lamento: o amante
que se penitencia para chantagear o amado;
nem de um desmaio involuntário,
uma hipnose constante diante de algo adorável,
uma imersão em tudo, uma comunhão com o sagrado,
que - suave - torna a própria vida dispensável.
A razão é outra, Coisa Amada.
Abismo-me porque não a tenho e, ainda assim,
há algo em você que se abre e me apavora:
um medo de perder a lembrança dos seus acidentes,
do olhar às vezes perdido, do riso insistente, da sua tatuagem,
da sua cicatriz, do seu corte no dente, da sua preocupação sem hora.
É tanto.
E não sei, Coisa Amada,
se é o 'tudo' ou o 'nada'
que me joga neste abismo, sem corda.
(Filipe Couto)