O que é o amor senão
o encontro do lápis com a folha branca;
não do lápis pensado - preso a uma mão opressora,
certa do desenho - cuidadoso para não derramar
uma gota de sílaba ou de sentido fora do contorno;
mas do lápis que, imprevisível em seu curso,
projeta formas e linhas e retas que não existem,
e deixa a própria folha (tão branca) sem rumo.
O poema - lápis e papel em vida - só termina (começaria?)
quando aquele leitor ranzinza, que busca a verdade de tudo,
se perde mais e mais ainda.
(por Filipe Couto)
Depois de tantos dias, tantas noites,
vem de novo aquela ideia fixa
escravizar-me com seu açoite.
Para tentar romper esse grilhão,
grito: "Não, não posso mais vê-la!",
"Amanhã mesmo, começo a esquecê-la!"
Armo-me, então, para o conflito.
Reúno forças e fico à espreita,
esperando que ela, de novo, apareça.
(Enquanto aguardo, me repito:
"É a última vez que passo por isso;
mato essa ideia e tudo está resolvido".)
Sete mil noites e sete mil dias
já se passaram (meu coração
em permanente fome e vigília),
e a ideia não aparece;
a luta (como sempre) se adia.
Onde, meu Deus, ela se esconde?
O que pretende? Por que se distancia?
É na ausência que ela se torna mais forte,
e, sem que eu perceba, não se trata mais
de uma inimiga a ser por mim combatida.
Pelo contrário:
eu sou dela, e ela é minha.
(por Filipe Couto)
Neruda, numa noite como esta,
depois de tantos sinais fechados,
de tantas buzinas tentando mover o tráfego,
de tanta fumaça embaçando sonhos, diálogos,
poderia escrever versos ainda mais tristes que aqueles de outrora:
"A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".
Porque hoje não há estrelas, nem azuis, e os astros
são mentiras criadas por alguns malandros,
que andam enganando tantos moços e moças
com essa fantasia de prever destinos.
Hoje, na profusão das coisas acontecidas,
a noite se fez mais fria.
E quem tirita
(com a alma em fogo e agonia)
sou eu.
(por Filipe Couto)
Coisa amada – poema em três movimentos
1.
Por mais que eu me passe a limpo
em poemas e sonhos,
não te encontro, minha Coisa Amada –
meu labirinto, meu trabalho de Sísifo.
Então, te invento,
te crio.
2.
Diga: como saber quem é você,
se eu sequer sei quem sou?
(O tempo que vivo hoje é igual
a outro que passou. Mas qual?)
Recolho pelo chão roupas e dores
que são minhas, e não reconheço.
Tateio um escuro
de mim, Coisa Amada,
e tenho medo.
3.
Somos dedos da mesma mão,
filhos do mesmo delírio.
Somos um com o outro, Coisa Amada,
Quixote e Sancho contra gigantes
(e moinhos).
(por Filipe Couto)
Nesta noite alta
em que cada estrela é uma surpresa aos olhos,
finalmente entendo que viver é isto:
não procurar sentido.
Pois que o sentido rápido se escapa nas tramas das mensagens,
na timidez dos olhares, nos sorrisos escondidos.
E o viver é mais que isso;
é mais que caçar o vento:
é amá-lo,
ainda que ele só nos bagunce os cabelos,
ainda que só nos deixe ciscos.
É nosso destino (seria vício?)
esse amar destrambelhado e irresponsável,
esse compromisso de papel passado com o imprevisível.
Mesmo que muito doa, viver
é isso.
(por Filipe Couto)