Insônia
Há no insone algo de semente,
um mistério encerrado em claustro
a se bater contra as paredes do sono,
em meio a tudo que dorme indiferente.
É dessa semente esquecida pelo tempo
(e também dele filha)
que o insone se alimenta: fruto que não existe,
sem valor para o corpo, sem gosto para alma ou língua.
E é dentro dessa substância
sem carne, pele, cor, sabor e vida
que já reside uma nova semente,
atenta para ser colhida;
semente fiel à sua natureza,
sempre acordada,
pronta para, das nossas entranhas,
ser explodida.
(por Filipe Couto)
O poeta olha o Facebook
Ela era tão branca e tão linda,
seus olhos tão claros, tão vivos,
os braços abertos para o infinito,
o sorriso leve, a cabeça erguida.
Mas, para que ela fosse esse anjo de romaria,
foram necessárias mãos calejadas, pés rachados,
sonhos roubados, amores calados e choros contidos.
Foram pretos - de beiços largos - que por séculos a fio
serviram (escravos) aos que se disseram escolhidos
para serem senhores de si e de tantos outros já nascidos.
Foram tantas as vidas desperdiçadas e violadas,
tantas as vidas que poderiam ter sido,
para que ela hoje pudesse ser
essa pintura - tão curtida e comentada -
que olha o mundo com o coração vazio.
(por Filipe Couto)
A água e a terra - meditação em quatro poemas
1.
Desnudo-me num novo jogo
em que não sou mais eu
(nome e corpo carregado de promessas)
mas outro.
2.
Ser tantos e tão poucos,
numa sucessão infinda de seres múltiplos e únicos,
ausente de destino,
como rio que se desloca imóvel,
esquecido do que traz ou trouxe.
3.
Mas de que adianta saber-se água
se o mundo quer terra?
Vou-me. Passo.
À frente, ninguém me espera.
4.
Antes que eu me perca,
antes que eu nos perca nessa sucessão de mim,
bebe-me inteiro, amor.
E se não puder
(por já estar saciada a sede)
mergulha-me, transborda-me para a tua terra
e deixa-me ser parte daquilo que te nutre.
E quando surgirem flores, amor,
colhe... colhe o que de mim ainda resta.
(por Filipe Couto)