sábado, 17 de agosto de 2013

Poema 170

Insônia

Há no insone algo de semente, 
um mistério encerrado em claustro 
a se bater contra as paredes do sono, 
em meio a tudo que dorme indiferente. 

É dessa semente esquecida pelo tempo 
(e também dele filha) 
que o insone se alimenta: fruto que não existe, 
sem valor para o corpo, sem gosto para alma ou língua. 

E é dentro dessa substância 
sem carne, pele, cor, sabor e vida 
que já reside uma nova semente, 
atenta para ser colhida; 

semente fiel à sua natureza, 
sempre acordada, 
pronta para, das nossas entranhas, 
ser explodida.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Poema 169

O poeta olha o Facebook

Ela era tão branca e tão linda, 
seus olhos tão claros, tão vivos, 
os braços abertos para o infinito, 
o sorriso leve, a cabeça erguida. 

Mas, para que ela fosse esse anjo de romaria, 
foram necessárias mãos calejadas, pés rachados, 
sonhos roubados, amores calados e choros contidos. 

Foram pretos - de beiços largos - que por séculos a fio 
serviram (escravos) aos que se disseram escolhidos 
para serem senhores de si e de tantos outros já nascidos. 

Foram tantas as vidas desperdiçadas e violadas, 
tantas as vidas que poderiam ter sido, 

para que ela hoje pudesse ser 
essa pintura - tão curtida e comentada -
que olha o mundo com o coração vazio.

(por Filipe Couto)

sábado, 10 de agosto de 2013

Poema 168

A água e a terra - meditação em quatro poemas 

1. 
Desnudo-me num novo jogo 
em que não sou mais eu 
(nome e corpo carregado de promessas) 
mas outro. 

2. 
Ser tantos e tão poucos, 
numa sucessão infinda de seres múltiplos e únicos, 
ausente de destino, 

como rio que se desloca imóvel, 
esquecido do que traz ou trouxe. 

3. 
Mas de que adianta saber-se água 
se o mundo quer terra? 

Vou-me. Passo. 
À frente, ninguém me espera. 

4.  
Antes que eu me perca, 
antes que eu nos perca nessa sucessão de mim, 
bebe-me inteiro, amor.

E se não puder
(por já estar saciada a sede)

mergulha-me, transborda-me para a tua terra 
e deixa-me ser parte daquilo que te nutre. 

E quando surgirem flores, amor, 
colhe... colhe o que de mim ainda resta.
(por Filipe Couto)