sexta-feira, 13 de março de 2015

Poema 226

Moro numa rua sem saída, quieta,
onde não são precisos contorcionismos
para enxergar, no alto, o céu em aquarela.

No meio da noite, entretanto, acorda-me sempre
um mesmo passarinho, de voz fina e incansável.
(Agora mesmo ele me dá a honra de um concerto,
duríssimo de ser entendido e um tanto desafinado.)

Esse apelo do passarinho sensibiliza um cão, que ladra,
e logo outros cães e passarinhos, em uníssono,
esfaqueiam sem pena a madrugada.

A convulsão continua até que,
por obra de algum acordo secreto e grave,
eles param. Fundem-se à noite.

(O que houve? O que terá havido?)

Talvez eles, como eu, em algum momento
também tenham percebido o perigo de acordar a noite,
liberar seus fantasmas e tudo mais que não se pode ver,
mas que fica guardado, escondido, no silêncio de uma estrela.

Porque pode ser que da noite despertada
não haja mais volta: estaremos todos condenados
a tatear para sempre o mais escuro de nós mesmos.

E, nesse caminho, esbarraremos apenas conosco. Sozinhos.
Lá, onde não há mais nada, senão um longo infinito.
(Filipe Couto)

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