segunda-feira, 27 de julho de 2015

Intervalo de prosa

Ele acreditava no Amor. Mas também não acreditava. Entendia-o como essência, mas não como experiência; como teoria, não como fato. Explicou-me:

- Veja você a complicação da coisa. Ela chega todo dia às 16h. Ontem, chegou às 20h. Fiquei preocupado, é claro. Mas o que poderia dizer a ela? "Olha, isso não se faz: você me preocupou...", "Não podia ter me avisado?", "Tá pensando que isso aqui é zona?". Ou talvez agir como se nada houvesse passado: "Vamos comer alguma coisa?". Posso, com delicadeza, dizer o que sinto e, com sabedoria, escolher a intensidade com que o revelo. Mas como saber o grau?

Você pode imaginar que uma cobrança exagerada pode sufocar o outro, e que uma demonstração de naturalidade pode sufocar a mim; então, o melhor é revelar um pouco da minha angústia, sugerindo que algo seja diferente numa próxima vez: "Você chegou! Que bom estar tudo bem; quando for assim, me avisa, só pra que eu não me preocupe?"

Mas e se o outro está precisando na verdade é da minha angústia intensa, pra se sentir protegido e cuidado? E se o outro quer é a naturalidade, por estar com outras pressões, e precisar apenas de companhia? Ele não é aquilo que eu imagino que seja ou aquilo que eu gostaria que fosse. Ele é.

A tragédia, amigo, é que quero dar ao outro aquilo tudo que há em mim, mas sei que não posso, por muito querer bem. Então meço palavras. Sofro, choro, mas evito que me olhem. Se for inevitável que vejam, ponho óculos. Digo estar tudo bem, mas meu corpo diz o contrário: rejeito o toque, o beijo, a conversa carinhosa. Puno-o, por ele não ter a capacidade telepática de ler o que está escrito dentro de mim.

Preciso do "Está tudo bem?", "Aconteceu alguma coisa?", para que o outro reconheça meu esforço em calar, por muito amar. Você sabe: o amor precisa ser visto. Mas, ao fazer isso, estrago o esforço, torno o outro responsável pela minha tristeza exatamente porque não quero responsabilizá-lo por ela.

Anulo-me, para fazer nascer o outro e, ao fazer isso, anulo-o. Liberto-o e o faço refém.

No amor, podemos até ser maduros na teoria, na elaboração do discurso, na percepção do certo e do errado; mas sempre somos crianças na prática. Com a pureza, a falta de jeito, a inconsequência e as limitações que isso traz.

Um emaranhado confuso de contrários.

É isso, amigo: acredito tanto no Amor, que não sei se ele pode existir.

(Filipe Couto)

domingo, 26 de julho de 2015

Poema 243

Acendi há pouco as luzes do quarto,
e não notei alguns de seus vestígios.

Não há mais aquela bagunça que você fazia;
não há mais retratos, roupas, livros.

"O lugar mais sombrio é sempre embaixo
da lâmpada", diz um provérbio chinês antigo.

E lá estava eu diante da tua clara despedida,
sem conseguir enxergar que não sou mais seu;

e que você não é minha.
(Filipe Couto)

terça-feira, 21 de julho de 2015

Poema 242

Não é brincadeira:
o amor me deixou em carne viva;
qualquer carinho hoje já me dá agonia.

Vá lá:
pode ser que um novo amor me dê outra pele,
e eu enfim consiga aceitar uma ou outra carícia.

Mas é próprio do amor despelar-nos em água quente
para realçar de novo cada uma das nossas feridas.

Então,
só vejo um jeito de escapar dessa armadilha:
achar alguém que nos leve consigo, dentro de si,

que, mesmo em profunda dor ou desencanto,
nos ofereça abrigo e companhia.

(Filipe Couto)

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Poema 241

Acabei de topar com Deus.
Ele ofereceu dois ou três conselhos
e perguntou o que eu queria. Disse-Lhe eu:

"Há um coração em que penso todos os dias
e hoje ele deve estar por aí, perdido em más companhias.

Deus, por mais beijos e apertos que haja,
que todos ela ache sem gosto e sem graça.

E, quando for hora de sair de casa pela manhã
ou de voltar a ela depois da noitada,

que ela respire, Senhor, a primeira luz
por Ti enviada

e, sem perceber,
para dentro de si me traga.

Mais nada".
(Filipe Couto)

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Poema 240

HAIKU

Gastei tanto meus
olhos em lágrimas, que hoje
já não enxergo nada.
(Filipe Couto)

terça-feira, 30 de junho de 2015

Poema 239

No amor, silenciam-se todas as palavras.
Há só uma luz que arde nos lábios e nos olhos:

"Entra, aqui é teu lugar; acha teu espaço, tua cadeira;
corre os jardins, colhe o que queiras;

e se precisares de paz,
meu amor,
dorme sob minhas estrelas."
(Filipe Couto)

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Poema 238

A vida anda mais perigosa e difícil a cada dia,
Coisa Amada. Por isso, te suplico. Vem comigo:
dentro do amor, há um barco para navegar.

E se o mundo não quiser nos deixar partir,
por muito precisar de nós dois pra se exibir,
dentro do amor, mora uma canção de ninar.

E aí a gente pode se esquecer de tudo, sonhar junto,
sem pressa ou medo, a vida toda num minuto.
Dentro do amor, eu e você, em qualquer lugar.
(Filipe Couto)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Poema 237

Às vezes me isolo de tudo,
sem nenhum motivo aparente.

Quantos de vocês já não terão
passado por algum momento assim?

Se entendem o que eu agora digo,
sabem que não falo de solidão
(que ela pressupõe algo que foi tido,
e eu sei lidar com esquecimentos de mim).

O que sinto é de outra espécie.
Eu nada tive, mesmo quando achei que tivesse.

Sinto-me plenamente adiado:
sangue e nervos dormindo.

Sou pela metade.
Uma noite de domingo.
(Filipe Couto)

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Poema 236

Penso numa semente:
enterrada, mas paciente;

afastada da luz desde o princípio,
sem medo do escuro por ofício.

E também penso que a noite chega para todos, para tudo:
de fora para dentro, das bordas para o centro, para o fundo.

A escuridão nos empurra para uma solidão de semente:
a pressão da terra em volta, a estação certa que demora,
o úmido dos olhos, o húmus do coração em conserva.

Lição da semente: ela nunca desiste. Espera.
E, por fazê-lo, germina, rompe em vida. Acerta.
 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 17 de abril de 2015

Intervalo de prosa

Faz quase um ano que ela se deu ao mundo. Não aceitou companhia, nem explicou muita coisa. Pegou uma canoa pra navegar entre lágrimas e remou, remou, remou até uma terra firme qualquer, além de qualquer saudade. 

O povo todo se admirou daquela providência. Nem eu, que tão bem a sabia, tinha já me percebido dessa urgência de partida. 

Ela está lá ainda. E ninguém mais pergunta ou assunta sobre o caso. 

Mas eu permaneço: olho mirando uma mudança no movimento das águas. Pois que o tempo é coberto com uma colcha trançada de encontro e desencontro. A vida que se demora passa; a vida que passa se demora. 

Há lá fora, agora, uma esperança de chuva. O cheiro de terra molhada que ela gostava. (Nessa outra terra há também?) 

O rio vai, uma vez mais, estar cheio. 

E se ela, por percebimento, quiser remar de novo, e o barco estiver velho, os braços sem força, os olhos embaçados? 

E, por isso, a dor hoje é enorme, aberta. Uma ferida vermelha que lanço ao céu e se alastra, feito tarde de sol. Farol. 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Poema 235

No fundo, eu não existo. Nem você. 
Existíssemos de verdade não faríamos 
tantas bobagens, não desperdiçaríamos 
tantas oportunidades por motivos bestas. 

"Ah, hoje tô cansado!", "Nossa, como é longe!", 
"Isso não é pra minha idade!", "Se depois 
eu me arrepender, já vai ser tarde!" 

A vida cabe na palma da mão de um mágico 
que a faz desaparecer e ressurgir atrás de uma orelha. 

Tem gente que sequer acha graça; 
tem gente que conhece o truque 
e ainda assim se finge surpresa. 

De qual lado você está? 
É disso que depende sua humana natureza.
(Filipe Couto)

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Poema 234

Sofro de um poema que 
não consigo escrever. 
Tenho tema, palavras, 
mas falta coragem: 

colocar no papel vai doer. 

Ai, coração que bate, 
e machuca o peito que quer paz. 
Abro as mil janelas do quarto, 
e ainda assim me falta ar.
(Filipe Couto)

sexta-feira, 20 de março de 2015

Poema 233

Economizem água,
empresários do agronegócio:
preciso de luz em casa.


Toda vez que a apago,
acende-se um escuro
que me faz ver tudo,


e não cala
. 
(Filipe Couto)

quinta-feira, 19 de março de 2015

Poema 232

Quem nunca dormiu ao lado
de um um labirinto ou de um abismo;


quem nunca chamou seus fantasmas (mortos
ou vivos) pra chorar uma sofrência desesperada;


quem nunca fez o coração de colete e se atirou
ao mar para salvar um peixe que se afogava;


todos esses estão condenados à vida de verdade.
Aos demais, resta-nos a melhor parte:


o que não existe, a vertigem, o perigo.
E aí o amigo ressabiado pergunta: "Mas isso vale a pena?"


E eu respondo de pronto: "Claro! 

É lá que mora o poema!"
(Filipe Couto)

quarta-feira, 18 de março de 2015

Poema 231

A vida não foi nem um pouco o que eu quis.
Mas, também fosse, eu não seria eu, e não
carregaria estes olhos meio vesgos,
de tanto tentar olhar dentro de mim.


(Fosse a vida como eu queria, guardaria,
ainda, um ou outro momento pra ser
bem infeliz: já me apeguei aos meus erros,
sentiria falta de remoê-los – dia não, dia sim.)


Como a vida não foi do jeito que quis
e, se fosse, não saberia enfim o que fazer,
aceito tudo de bom grado, seja o que for:


pode ser gozo ou lamento, você ou cem pedras.
"Deus dá a quem se deu", "quem não faz leva",
escolha seu ditado: um deles vai dar caldo, e não merda
.
(Filipe Couto)

terça-feira, 17 de março de 2015

Poema 230

Hoje à tarde, estava eu
de pernas pro ar, entediado, em casa,
quando resolvi arrumar meus problemas.


Joguei uns fora,
outros empurrei prum canto
e os demais fui empilhando, empilhando, empilhando.


Como a torre estivesse já alta, resolvi ver no que dava:
somei aos problemas umas tentativas fracassadas de lidar
com a vida, além de uns complexos que desde criança eu tinha.


Terminei tudo agora à noite,
e ficou bonito pacas!


Vejam, senhoras e senhores,
este meu grande monumento erguido


ao nada
. 
(Filipe Couto)

segunda-feira, 16 de março de 2015

Poema 229

Como preciso de exercício,
hoje fiz uma trilha até o alto de mim.


Não foi tão fácil quanto parece, não!
Vocês não imaginam quanto espinho, quanto
fogo, quanto frio havia no caminho que escolhi.


Era toda hora o coração gritando "Vai!",
a memória alertando "Pra que isso, chega!".
Mas consegui, amigos. Cumpri o desafio.


Não sei se meu corpo agora funciona melhor,
se consegui com isso perder alguns quilos.


Mas, acreditem, recomendo a todos esse esforço:
a paisagem lá de cima da gente é linda
. 
(Filipe Couto)

domingo, 15 de março de 2015

Poema 228*

Testando... Alô... Um, dois, três... Testando...
Tentando contato... Alguém aí?
Olha, vou falar assim mesmo, tá?
Aqui a vida não tá fácil, não...


Outro dia mesmo meu coração
pulou pra boca... Pois não é que vi
aquela maldita – tsc, você sabe
quem é – na Sapucaí? Na avenida?


Tô numa revolta que não tem fim:
ela NUNCA gostou de Carnaval,
achava tudo chato, coisa e tal....


Oi! Alô! Responde aí, por favor!
Já sei! Você tá de caso com ela!
Responde! Você não é homem! Alô?!

(Filipe Couto)
*decassílabo.

sábado, 14 de março de 2015

Poema 227

Para combater a falta d'água,
chore mais e com regularidade:
limpe sempre olhos e alma.


Para não ser feito de idiota
pelas concessionárias de energia,
conserve acesa sua luz própria.


Há uma escassez de 

tudo hoje em dia.
Até de vida
. 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 13 de março de 2015

Poema 226

Moro numa rua sem saída, quieta,
onde não são precisos contorcionismos
para enxergar, no alto, o céu em aquarela.

No meio da noite, entretanto, acorda-me sempre
um mesmo passarinho, de voz fina e incansável.
(Agora mesmo ele me dá a honra de um concerto,
duríssimo de ser entendido e um tanto desafinado.)

Esse apelo do passarinho sensibiliza um cão, que ladra,
e logo outros cães e passarinhos, em uníssono,
esfaqueiam sem pena a madrugada.

A convulsão continua até que,
por obra de algum acordo secreto e grave,
eles param. Fundem-se à noite.

(O que houve? O que terá havido?)

Talvez eles, como eu, em algum momento
também tenham percebido o perigo de acordar a noite,
liberar seus fantasmas e tudo mais que não se pode ver,
mas que fica guardado, escondido, no silêncio de uma estrela.

Porque pode ser que da noite despertada
não haja mais volta: estaremos todos condenados
a tatear para sempre o mais escuro de nós mesmos.

E, nesse caminho, esbarraremos apenas conosco. Sozinhos.
Lá, onde não há mais nada, senão um longo infinito.
(Filipe Couto)

quinta-feira, 12 de março de 2015

Poema 225

Vou pregar na parede um retrato 
do primeiro pecado que a gente se deu. 

Vou rabiscar no meu braço 
um pedaço do sonho que a gente viveu. 

Vou, assim, criar mais espaço 
aqui dentro do meu coração, 

e guardar dentro dele uma outra invenção: 
você e eu. 

Agora pra sempre, 
como Deus prometeu.
(Filipe Couto)

quarta-feira, 11 de março de 2015

Poema 224

Querem fazer um protesto 
verdadeiramente digno? 

Peguem essas placas 
que proíbem pisar a grama, 
joguem-nas no lixo, deitem e rolem, 
embolem-se, joguem-se na relva 

e, quando chegar a polícia, 
vocês vão ver: luzes e sirenes 
até ajudarão na festa. 

Amar, senhoras e senhores, é 
hoje em dia 
o maior ato possível de rebeldia.
(Filipe Couto)

quarta-feira, 4 de março de 2015

Poema 223

Chega a noite, momento de oração: 

Quando eu por acaso te encontrar nestas ruas, 
Coisa Amada, proteja-me das tuas faces 
(coradas, vermelhas), porque elas são flores, 
e eu sou abelha: se juntas, mais que perfeitas. 

E eu sei que não me notarás: tenho uns quilos 
a mais, uns cabelos brancos e uma enorme 
dificuldade de começar um assunto com 
alguém cuja voz (tua!) silencia tudo. 

Prosseguirei meu caminho. Sem ti. Mas ainda 
te procurando ao fundo de cada garrafa de 
cerveja, em cada fim de tarde que apareça. 

Já me embriaguei demais nesta vida, Coisa 
Amada, principalmente de poesia. E não 
posso continuar desse jeito, nesse 

desespero... Passa longe de mim. Agradeço. 
Que assim seja.
(Filipe Couto)

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Poema 222

O raro vento que sopra 
no Rio em chamas de agora 

acarinhou os cabelos de uma moça 
que conversava com seu namorado, 
justo na porta do bar em que eu estava. 

Ele não se sentiu enciumado. 
Pelo contrário: achou graça 

e, com a ponta dos dedos, 
ajeitou um fio ou outro em frente aos lábios dela 
e ambos se encontraram, num beijo de novela. 

Simples, corriqueiro, tolo. Eu sei. 

Mas como me doeu, Coisa Amada, 
 ver duas almas de mãos dadas,

e não ter mais você.
(Filipe Couto)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Poema 221

– Você tem um ar triste... 
(Ela me disse.)

– É que, no momento em que te encontrei, soube também 
que já havia te perdido. 

Por isso, fico assim: em permanente luto; 
por nós, pelo mundo. 

Deixo de lado o verão, as praias (sol e céu), 
dinheiro, obrigações de filho, de amigo, 

e desatino a escrever versos 
que jamais serão lidos, 

porque jamais os mostrarei. 

Sim, sou triste. 
E feliz. 

É assim que vivo. 

O diagnóstico não soa lá muito lógico, eu sei. 
Fazer o quê...? 

Somos todos únicos: sou a única testemunha 
da minha própria loucura.
(Filipe Couto)

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Poema 220

Por quase 14 bilhões de anos esperei por ela. 
Desde que o universo era apenas brilho, 
desde que não havia ainda o 'antes'. 

Claro, já houve cometas 
rasgando o céu do meu peito; 

houve estrelas e estrelas, 
em torno das quais gravitei desejos. 

Só não houve 'ela': 
minha casa, meu planeta, 

minha quintessência, 
minha constante perfeita 
neste Plano sem pé, nem cabeça. 

Eu, que já fui 
(quem me dera voltar a sê-la...) 
matéria densa e acesa.
(Filipe Couto)

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Poema 219

Poema de Natal 

Era ainda manhã, quando comecei a procurar 
o que escrever sobre esta véspera. 

Eis que só agora, quase finda a espera, 
ocorreu-me que nada se pode dizer. 

Sim, nada. 

Há algo de maravilhoso e suave no silêncio 
que entrecorta os encontros do dia, 
as histórias novas e as repetidas, 
os risos compartilhados, 
os abraços e os beijos de amores, amigos, família. 

É nesse breve espaço de espontaneidade genuína, 
distante dos presentes, dos protocolos e da hipocrisia, 
que mora - e renasce sempre, pleno de alegria - 

Deus.
(Filipe Couto)

domingo, 18 de janeiro de 2015

Poema 218

Era uma tarde quente (dessas que 
o Rio nos reserva em dezembro), 

e eu respirava mar 
quando uma onda se quebrou 

bem à minha frente. 

Tentei escutá-la, entender 
o que, em estrondo, ela dizia. 

Nada. 

Pedi ajuda a poetas dos mares: Camões, 
Pessoa, Cecília, Vicente, Caymmi, Sophia. 

Nada. 

Tudo que a onda dizia me era inaudível 
e afogava minha fantasia: 

era um mundo todo novo que se abria, 
um mundo tão perigoso que não me deixava alternativa: 

prendi-o. 

Hoje ele agoniza com porta trancada, chave passada, 
n'alguma cela escondida dentro de mim. 

Eu, que só quero um mar sereno, 
onde meu sonho possa nadar em silêncio 

e paz.
(Filipe Couto)

sábado, 17 de janeiro de 2015

Poema 217

Somos o que somos e o que não somos: 
nós somos o que somos e o que parecemos ser. 

O lado de fora (da casca, dos olhos, das palavras), 
esconde algo tenebroso, horrendo: o lado de dentro. 

O lado de fora preenche o mundo (e a Terra é imensa); 
o lado de dentro mal cabe em nós mesmos, de tantas tormentas. 

Ser o que o outro espera, e não aquilo que se é, 
é algo trabalhoso e torturante. Exige disciplina, cuidado, 

investimento em máscaras e discursos, exige um estar sempre em alerta, 
exige um luxo de recursos que poucos, bem poucos, enxergam ou têm. 

Sei que apenar 'ser' - por si, em si - também 
não é fácil. Requer, sobretudo, coragem. 

Em vez de roupas, acessórios, carros e cargos, para 'ser', 
temos que andar, sem medo, despidos, com o coração na mão. 

E, se fizerem pouco dele, que bom: a gente passa, 
e sobram menos uns babacas na nossa contramão. 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Poema 216

Era tudo escuro e áspero no mundo 
quando nos sentamos à mesa - o Amor e eu. 

Pedimos os cardápios, 
escolhemos bebidas e pratos, 

e, aos poucos, à luz de velas, 
o Amor foi se tornando suave e claro pra mim. 

Ele não era o brilho líquido, 
estrelado e espumante, que nos foi servido 
para saciar a sede. 

Também não era o tempero, 
algo amargo, algo doce, 
aguçando corpo e desejo. 

Lembro-me como se fosse hoje. 
Naquela mesa, naquela noite, descobri: 

o Amor é sobretudo a espera, 
como eu jamais gostaria que fosse.
(Filipe Couto)

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Poema 215

A vida 
acontece de repente. 

E quando ela vem de frente
não há
coração que resista, 

nem dor 
que aguente.
(Filipe Couto)

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Poema 214

Agonia de ter este corpo, e não outro; 
de não ser aquele que viveu nossos sonhos, 
de jamais ter alçado voos ao teu lado, 
de querer ser Ícaro e ter sido Dédalo. 

Desespero de não te encontrar à noite 
e conseguir repouso nas tuas batalhas; 
crer-me cavaleiro nobre, como Quixote, 
confortar-te com loucuras de toda sorte. 

Aflição de carregar a Arca da Aliança, 
de entender a comunicação entre Deus 
e homens, mas estar no Egito sem esperança. 

Medo de conhecer Heráclito, a real 
alternância entre contrários e, depois de nós, 
de tudo acabado, sabê-lo tolo e errado.
(Filipe Couto)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Poema 213

Sozinho, no sol da tarde tijucana, 
percebo-me não mais à beira do abismo, 
mas já completamente abismado. 

Não se trata de lamento: o amante 
que se penitencia para chantagear o amado; 

nem de um desmaio involuntário, 
uma hipnose constante diante de algo adorável, 
uma imersão em tudo, uma comunhão com o sagrado, 
que - suave - torna a própria vida dispensável. 

A razão é outra, Coisa Amada. 
Abismo-me porque não a tenho e, ainda assim, 
há algo em você que se abre e me apavora: 

um medo de perder a lembrança dos seus acidentes, 
do olhar às vezes perdido, do riso insistente, da sua tatuagem, 
da sua cicatriz, do seu corte no dente, da sua preocupação sem hora. 

É tanto. 
E não sei, Coisa Amada, 
se é o 'tudo' ou o 'nada' 
que me joga neste abismo, sem corda.
(Filipe Couto)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Poema 212

Não estava à beira do abismo 
quando você me encontrou: 

pelo contrário, planava livre sobre 
pastos verdejantes, cheios de flores. 

Mas existe em todos esse desejo 
insaciável e misterioso de pouso, 

e eu me dei inteiro, como nunca antes, 
para o cuidado delicado do seu beijo. 

Amamos juntos. Perdi a intenção do voo: 
eram meus seus olhos, era seu meu corpo. 

Seus pés e passos levaram-me consigo 
a terras que jamais havia visto. Numa delas, 

você me largou. Perdoo seu deixar de amar, 
Coisa Amada. O amor que você me deu, não. 

Não o perdoo.

(Filipe Couto)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Poema 211

Deve haver alguma palavra 
que traduza sua doçura. 

Procurei no meu peito: 
nenhuma... 

Além de você, Coisa Amada, 
em mim não há mais nada, 

senão bruma.
(Filipe Couto)

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Poema 210

Estive hoje no aeroporto, 
depois de horas tentando alcançá-lo, 
para buscar algo que me mandaram. 

O coração da cidade me assusta: 
fecham-se mais e mais ruas, abrem-se tímidas vistas, 
empurram-se edifícios enormes, acima até da lua. 

A cidade se espalha, não como um rio - contido entre margens -, 
mas como um mar em ressaca - que avança sobre tudo - 
testando seus limites, querendo alcançar o futuro. 

No aeroporto, 
os painéis apontavam horários e destinos 
(lazer, negócios, outros compromissos),

 e nenhum trazia meu nome: 
"Filipe Couto, 9h, Outro Lado do Mundo, 
 embarque neste segundo". 

É que não sinto nenhuma viagem aqui dentro.
Se trocasse de vida, ela teria a mesma forma: 
continuaria essa coisa meio morna em que me vejo. 

E muito mais que a cidade 
é isso que me toma de medo.
(Filipe Couto)

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Poema 209

Hoje, no restaurante, 
um casal em silêncio 
(bocas preguiçosas comendo). 

Eis que erguem os olhos e dizem 
um ao outro, ao mesmo tempo: 
"- Gostou?" 

As palavras se encontraram entre eles, 
se amaram até chegar aos ouvidos 
e se transformaram depois em sorrisos. 

Essas palavras de hoje, 
entreouvidas e vistas no restaurante, 
jamais saberão que foram como nós dois: 

almas gêmeas por um instante.
(Filipe Couto)

domingo, 30 de novembro de 2014

Poema 208

Final de tarde, 
desses em que mar e sol 
se encontram num suave beijo: 

o céu ruborescido 
e a água levantando asas 
numa praia do Rio de Janeiro. 

Tudo quase tão perfeito 
quanto teu cabelo solto 
ao sabor do vento 

fazendo-te virar o rosto 
para me ver inteiro: 

alma e corpo acesos.
(Filipe Couto)

sábado, 29 de novembro de 2014

Poema 207

Einstein disse que sou louco. 
(Sim, conversei com ele há pouco...) 

Tento e tento e tento 
sempre de novo, sempre do mesmo jeito, 
só com mais esforço, 
e não a tenho a meu lado. 

Nietzsche me contou outra história. 
(Ele apareceu agora pra um bate-papo no café...) 

O acaso existe e é com ele (por ele?) 
que se movem os pés na dança 
das estrelas, dos sonhos, da pele: 

com sensatez, não há festa. 

E agora? 
Se louco, sozinho; 
se sensato, num mundo chato? 

Amigos meus, 
o que será deste sábado? 
(Filipe Couto)

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Poema 206

A vida tem prazo, 
e não é de validade: 
há vidas longas e pequenas; 
outras curtas e imensas. 

A vida tem prazo, 
e só não se perder pelo caminho 
já é um milagre. 

E, se a vida tem prazo, 
manter as veias acesas sem propósito, 
ter um corpo sem uso, um coração sem pulso: 
eis a receita perfeita para um desastre. 

Mas ter um gosto de lágrima que resiste, 
ou de um beijo que (ainda) inexiste, 
ou de um carinho que passou... 

Talvez, amigos, talvez isso nos salve. 
(Filipe Couto)

domingo, 16 de novembro de 2014

Poema 205

Poeminha pra tarde de sábado com chuva

Deve haver formas 
menos duras de se expor 
ao ridículo... 

Mas, não... 

Sou desses que deixa 
o coração (logo ele!) todo à mostra, 
pagando mico...
(Filipe Couto)

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Poema 204

Sou pouquíssimo esperto para o mundo cibernético: 
clico onde não devo, troco teclas, interrompo conversas... 
nem ler todos os meus emails eu consigo. 

Só fico à vontade mesmo quando estou apenas comigo. 
Sozinho em frente à tela - a folha do word aberta -,
derramo um pouco do meu dia em palavras, em ideias. 

O silêncio me escuta bem e sabe o que eu sinto. 
E, nesse instante, não sou mais um completo imbecil 
tentando conectar meu computador à rede wi-fi interna: 

sou poeta.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Poema 203

Nossa Fotografia (poema em três movimentos) 
1. 
Esta fotografia de nós dois, 
emoldurada naquela janela infinita - que você mesma fez, 
com ripas de madeira e tinta - assombra-me os pesadelos, noite e dia. 

Lembro que o fotógrafo fitou-nos por longos instantes, sem bater: 
pode ter sido a falta de jeito com a sua máquina, 
pode ter se confundido com aquele céu azul, tão domingo, 
pode ter ficado bobo com seu sorriso, 
ou até com meus olhos - a seu lado tão vivos. 

Nunca vou saber. Mas, cá entre nós, é preciso? 

A revelação cuidadosa (as revelações não devem ser sempre assim?) 
e a química envolvida traduziram com perfeição no papel a cena: 
lá estamos nós de novo, sob o céu mais que azul, 
seus lábios e meus olhos rindo, como se fosse domingo. 

2.
Hoje, mergulhado na janela infinita 
que você mesma fez com madeira e tinta, fico a pensar: 
fosse a foto tremida, teria eu coragem para largar 
essa paisagem, essa vista e voltar à vida? 

Estivesse escura, sem foco, com o dedo do fotógrafo por cima, 
eu conseguiria parar de contemplá-la? Eu me salvaria? 

"Não", responde-me o coração depois de um sussurro da memória vadia. 

Porque não importa o filtro que se use ou a mais alta tecnologia: 
lá, na fotografia, nítida ou embaciada, clara ou fria, 
há uma perda que não se vê, mas que (pelo menos você) já sentia. 

Era uma época em que você sorria, e eu acreditava 
que era eu - apenas eu - que lhe dava essa alegria. 

3. 
E fico preso à janela - a que você fez, lembra? de madeira e tinta? - 
tentando entender quando e por que a perdi; 
em que lugar se escondeu a magia. 
(Filipe Couto)

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Poema 202

Da vida de verdade - essa pra valer mesmo - 
sei quase nada, Coisa Amada. 

Desconfio de algumas coisas, no entanto: 
sei que deve haver algum parque ainda verde num canto, 
um peito - sem medo, ainda aberto - me esperando, 
uma chuva, para fazer brotar da terra, 
num pranto de descoberta, um novo mundo. 

Mas nada disso é certo, Coisa Amada. 
Tudo te espera, sem saber se a tua volta (a tua chegada) é certa. 
Hoje mesmo fez um sol agudo, que me machucou muito, 
e que fez do solo algo um pouco menos fecundo. 
Admito que houve uma brisa em algum ponto no meio tarde, 
mas ela - tão fraca - nem levou sonhos ao longe, nem aliviou o que lá no fundo arde. 

Será que tens a chave de tudo, Coisa Amada? Serás tu a brisa certa, 
o parque verde, o peito aberto, a chuva fecunda, o pranto da descoberta? 

Creio nisso e aguardo o futuro, sem pressa. 
Sim, correrão dos teus olhos algumas lágrimas, quando for preciso; 
sim, teu corpo todo vai se estremecer em dias de riso. 
És tu, Coisa Amada, a força que movimenta o mundo (o meu mundo); 
E tu - só tu - sabes disso há muito: 

desde que renasci ao te ver; 
desde o início do tudo.
(Filipe Couto)

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Poema 201

No fundo dos meus olhos, 
há uma imagem que não se decifra ao espelho. 

Sei que é algo leve e triste, sem nome ou endereço; 
algo sozinho; sozinho contra o mundo inteiro. 

Sei também que às vezes é dançarino 
e se apega ao pouco ritmo que bate em meu peito; 

outras vezes é uma luz fraca, 
que luta, mas se apaga atrás das pálpebras. 

Sei, por fim, que a amo, 
mesmo que ela não se revele ou se entregue; 

eu a amo na simplicidade do não saber, nem ter; 
naquele ambíguo espaço em que a cabeça é pouca 

e a alma é tanta, 
que cabem, juntos, o medo e a esperança.
(Filipe Couto)

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Poema 200

Ainda bem, 
ainda bem que resistem por aí os estabanados, 
tropeçando em buracos, sem medo de rir de si mesmos 
quando percebem que pegaram o caminho errado. 

Ainda bem, amigos, 
ainda bem que existem por aí os amantes, 
que, por furor, buscam lábios e encontram dentes, 
e se descabelam todos, sem ligar para os passantes. 

Ainda bem, ainda bem que estão por aí os que vadiam, 
os que erram, os que não se deram bem na vida, os que cometeram perjúrio, 
falaram impropérios, os que se arrependem e (não) se consertam. 

Ainda bem, meu Deus, 
ainda bem que há, neste mundo cada vez mais raro, 
pessoas que choram e têm medo, 

pessoas que são pessoas de fato.
(Filipe Couto)

domingo, 19 de outubro de 2014

Poema 199

É que sou todo desencontro, Coisa Amada... 

No silêncio, mais eu ouço; 
no vazio, mais eu tenho; 
no escuro, não tateio; 
no erro, sou perfeito. 

Todo dia, Coisa Amada, corro para meu próprio abismo, 
pensando estar ao encontro dos teus braços. 

Por isso, preciso tanto de poemas: 
eles me algemam inteiro a ti, 

e viro pássaro.
(Filipe Couto)

sábado, 27 de setembro de 2014

Poema 198

1. 
Empaquei meu poema num ponto. 
À esquerda, o discurso posto, já morto, 
e, como todo morto, incompleto 

(que vida e morte são duas faces 
do mesmíssimo mistério). 

2.
À direita, neblina. Só neblina. 

 Esperar que ela se desfaça, 
e a ideia clara irrompa precisa? 

Prosseguir, pé ante pé, com cuidado, 
evitando e aguentando possíveis buracos? 

Ou entregar-se à névoa, 
fundir-se a ela 

e viver em estado de vírgula, 
sempre à espera? 

3. 
Quanta metafísica, meu Deus... 
E eu só queria nesta tarde fria 
um pouco mais de poesia... 
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Poema 197

Há dias (muitos) em que a pedra 
pode ser muro (fortaleza infalível) 

deixando longe (em tom de ilha) 
a fantasia que nos parecia possível. 

Mas sobram pedras e pedras para proteger 
o silêncio do que não se deve despertar; 

pedras para defender no peito 
o amigo mais inimigo, íntimo: 

o amor que não pode ser destruído, 
o amor que não se deixa amar.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Poema 196

Há uma porta 
no meio do sonho, 
a sete chaves guardada. 

Dois pesadelos a vigiam de longe: 
sempre que eu me aproximo, 
eles tratam de afastá-la. 

Eis a trama formada. Do lado de cá não 
existe nada: perdi endereço, nome, rosto e telefone, 
minha estante de livros, meus instantes de gala. 

Atravessar essa porta em mim conservada 
é, pois, a esperança de um novo começo, 
em outra estrada. Então ponho-me à cama 

disposto a não mais acordar até encontrá-la 
 e enfrentar seus protetores com uma espada 
 no que restou do meu próprio sangue forjada. 

Mas o sonho não aparece no sono: ele vem 
quando os olhos cansados, ainda abertos, 
lavam a si mesmos na madrugada. 

Então desarmado, de mim mesmo abandonado, 
vejo surgir um novo dia - que não é novo, nem é dia - 
e a porta lentamente (bem à minha frente) 

mais uma vez se apaga.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Intervalo de prosa

Ela tinha cabelos longos e longos.

Quando os penteava, volta meia voavam alguns sonhos pela janela e viam-se príncipes e princesas se misturando às estrelas.

Perguntei se ela não poderia me ceder um ou outro devaneio para compensar essa minha falta de jeito com o abstrato.

E ela me respondeu: "Não se dá um sonho de travessia a quem anseia apenas pelo porto. Meus sonhos são meus, e ninguém pode ser tolo de achar que eles cabem em qualquer outro corpo."

Resignado, colhi meus cacos. Colei-os. Sem querer, formei um caleidoscópio, que me mostrou a vida de um novo jeito.

Bom ou ruim? Não sei. O olho não é mais o mesmo. É outro.
(Filipe Couto)

domingo, 31 de agosto de 2014

Poema 195

Será que em algum lugar do mundo 
há alguém a pensar o mesmo que penso agora? 

E de que adianta pensar, 
se nenhuma palavra traduz o que cala? 

Existe um tempo em que só se colhe 
o que não se plantou: 

 o desejo (preso) manda beijos, abraços 
e despeja (para todos os lados) 

em vez de fábulas, 
mágoas; 

em vez de final feliz, 
a vida sem sal que (burramente) se quis.
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Poema 194

Li no jornal que amanhã talvez dê praia, 
e ouvi meu horóscopo no rádio: "Geminianos, fiquem animados! 
Grana alta e mulher amada vão surgir num piscar de olhos!" 

Era dia de consulta com a terapeuta, 
e ela me garantiu que, sim, a felicidade existe, 
que a vida é uma beleza e que estou no caminho certo para tê-la. 

Na volta pra casa, não peguei um sinal fechado. 
Estacionei o carro, desci para comprar um guaraná gelado 
e vi no poste um cartaz em que estava sentenciado: 

"Mapa astral, leitura de mão, jogo de búzios, 
apelo ao santo: é tudo a mesma merda. 
Ninguém adivinha o que a vida nos reserva. 

Por isso, amigo, não ouça ninguém, não compre barulho, 
não acredite em promessas: não existe destino ou futuro. 
Acredite: amanhã, o que pintar é lucro!" 

Agora, já no quarto, tomando aquele uísque 
doze anos reservado para festas, rasguei a última foto dela 
e escondi a esperança num poço; num poço sem fundo. 

E, amanhã, poeta do poste, garanto: 
meu dia será maravilhoso. 
E único.
(por Filipe Couto)

domingo, 27 de julho de 2014

Poema 193

Meu dia é longo, como a tua ausência:

caminho numa sucessão de sóis sem fim, 
com pés cortados por espinhos de memória, 
rumo a um sonho que sempre se afasta de mim. 

É que tens, Amor, todas as estrelas nos olhos, 
e luas e cantigas no teu doce colo. 

Sem ti, não adormeço, nem amanheço. 
E nem sei se existo.
(por Filipe Couto)

sábado, 26 de julho de 2014

Poema 192

Ainda agora 
(ainda agora, amigos meus) 
foi-se embora alguma coisa de mim. 

Não deixou bilhete, nem grito: 
apenas vazio (seria abismo?) 
e um sábado, de coração aflito. 

Sei que levou consigo algo mais, 
algo precioso, que ainda não percebo, 
mas sinto. 

Por isso, tranco portas e janelas, 
ergo fossos e muros, 
apago sol e lua: 

Numa outra fuga, podem me levar tudo, 
e não restar nada de mim mesmo. 
Ou dela. 
(por Filipe Couto)

sábado, 19 de julho de 2014

Poema 191

Certa vez, arrumando meu sobrinho, 
ajudei-o a colocar uma camisa 
antes que ele fosse embora. 

A camisa já era pequena; 
menor ainda a gola. 

E, por alguns segundos (mínimos) fiquei sem ver seu rosto 
e vi seu esforço para emergir do escuro 
que eu, para protegê-lo, havia imposto. 

Pensei tê-lo machucado, arranhado, 
e nervoso pedi desculpas e repeti quanto ele era amado. 

Sei que você, que me lê, 
deve estar pensando "quanto desespero 
por um troço tão bobo..." 

E eu te pergunto, amigo, 
quando se ama, como não ser louco? 
(por Filipe Couto)

domingo, 6 de julho de 2014

Poema 190

Depois de tantos anos confiando em Deus
e em sua infinita sabedoria,
eis que a Vida me reserva uma noite de sábado,
com estrelas, mas sem Amor; com céu limpo, mas sem poesia.

A lua, dura e curva, hoje mente:
aguça os sentidos (cheiro, peso, cor) e me deixa sozinho,
sem destino, sem equilíbrio, sem nada a meu lado
para comigo deitar sob tanto perigo.

De concreto, tenho apenas estas teclas
que aperto, como se delas pudesse extrair meu próprio sangue,
mas donde tiro apenas palavras, que circulam
o buraco negro que carrega meu nome.

Palavras que somem no extremo instante,
deixando-me a ilusão da companhia,
e o silêncio de mais uma noite.

Um silêncio que hoje é mais denso - muito mais denso -
do que jamais fora antes.
(por Filipe Couto)

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Poema 189

O tempo 
não é uma flecha 
(reta, rumo a um alvo preciso). 

É antes um laço, 
que une pontos afastados 
de uma mesma corda. 

Deito-me e ao olhar o teto (do quarto, de mim) 
vejo um sorriso que desabrocha 
no exato instante em que se desfaz. 

E eis-me de novo preso, 
atado à saudade 
que resiste ao 'nunca mais'. 

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Poema 188

Olho para o chão com frequência 
e caminho lento, 

como convém a um homem 
que busca nas frestas das calçadas 
uma pequena flor, um musgo que seja, 

uma forma de vida qualquer 
com coragem de resistir e nascer 
em meio à frieza dos seres acelerados. 

Quem me vê pelo vidro dos carros 
acha-me triste... 

Eles não sabem o quanto de vida 
busco em cada passo. 
(Filipe Couto)

sábado, 7 de junho de 2014

Poema 187

Mentias que meus olhos te afogavam, 
e eu cria. 
 
Pensava ser eu toda a água, 
suficiente para a sua sede-vida. 

Hoje, me vês, e estás saciada.

O que fazer, então, com minha existência: 
tão tua e líquida? 
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Poema 186

É noite, 
e um punhal doce 
crava em mim uma ideia vadia, 
perdida no vento. 

E, em vez de sangue, Amor, 
de mim escorriam flores. 

Escorriam flores.
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Poema 185

Nada tenho a lhes contar hoje: 
passei o dia preso, 
amarrado às cordas de mim mesmo. 

Houve só um momento - 
eram duas ou três da tarde - 
em que me subiu um peso enorme no peito. 

Foi quando abri meu armário 
e vi um casaco que há muito não uso. 
Tentei-o. Não me coube. 

Mas ele ainda guardava 
meu cheiro de outra época: 

senti-lo me fez de novo cavaleiro 
cortejando sua amada donzela. 

Guardei o corpo que já foi meu 
em meio a tantos outros, que também já passaram, 
no mesmo armário e me deitei. 

Hoje nada aconteceu. 
Passei o dia preso, 
amarrado às cordas de mim mesmo. 
(por Filipe Couto)

domingo, 20 de abril de 2014

Poema 184

Páscoa

Nesta manhã de domingo, 
como em qualquer domingo, 
sento-me à mesa da sala para mais um desjejum:

as mesmas preocupações de sempre, 
as mesmas migalhas de sempre 
caem sobre o prato onde, agora, tirita uma luz. 

(Sim, uma luz.)

Colho-a, de imediato, como quem toma uma criança 
aos braços, e me pergunto: "De onde ela veio?" 

Confiro as janelas: fechadas. 
As lâmpadas: apagadas.

(Será que ela sempre esteve aqui?) 

Nesse instante lembro que tantas vezes fui fraco e falho, 
tantas vezes deixei meu coração tolamente apertado 
e fiz - de tudo que era claro - uma imensa noite...

Permita-me, então, Senhor, renascer contigo 
e viver o dia, como se fosse interminável, 
e viver o dia, como se acabasse hoje. 
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Poema 183

Cláudia da Silva Ferreira 
era a Cacau. 

Mãe de oito filhos: 
quatro de seu ventre, 
quatro outros que seu coração generoso 
(maior que o meu, maior que o seu) 
felizmente acolheu. 

Tinha emprego, CPF, 
RG e sonhos 
(como eu, como você). 

Tinha também seis reais, 
três para o pão, 
três para a mortadela 
(menos que eu, menos que você), 

mas não teve tempo para cruzar 
as ruas da cidadela em que vivia, 
onde gritos e tiros são fiéis companhias. 

Cláudia da Silva Ferreira 
era 
para aqueles polícias 

menos importante que um criminoso, 
um traficante. 

Há muitas Cláudias que surgem e somem, 
como cometas de sangue rasgando o céu do Rio. 

E mesmo estarrecidos, só contemplamos - passivos - o espetáculo, 
sem entender direito seu roteiro, seus atores, o drama, a trama, 

enquanto aguardamos - bovinamente - a próxima sessão da semana.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Poema 182

Porque existes, Amor, vigio 
e preparo meu corpo 
para te receber: 

sentidos aguçados, lábios 
prontos para que possas deitar, 
morrer, viver em mim. 

Depois do amanhecer, 
guardo tudo com cuidado, 
cada sonho num lugar. 

Despido de ti, saio ao mundo 
sem medo de ir além. 

Porque sei que existes, Amor. 
Não se vens. 

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Poema 181

O povo não é feito de previsíveis ondas, 
composto pelas mesmas águas ritmadas. 

O povo mora ao fundo - de nós, do mundo - 
e pouco é ouvido por quem está na praia, surdo. 

O povo não é paisagem ou fotografia; 
é movimento eriçado, é força disruptiva. 

O povo está (acredito) em constante vigília 
e pronto para desmascarar a todos. 

Um dia. 

(por Filipe Couto)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Poema 180

A Vida e eu - poema em três movimentos 

1. 
Nesta noite abafada de verão carioca, 
sentamos, à mesa de um bar, a Vida e eu. 

Ela (tensa) pede uma cerveja leve; eu amarga, 
e logo tentamos decifrar os pequenos sinais 
que vão revelar o que queremos um do outro. 

Sobre a mesa posta, repousa uma porção farta de memórias, 
salteadas na chapa com dor, alho, sal e alma,
enquanto os copos, com espumas e estrelas, unem céu e mar. 


2. 
Aos poucos já nos pegamos rindo à toa, 
e, de tão natural, já nem percebemos nossas presenças, 
no desenrolar dos batuques, que ecoam por ali . 

O Tempo, no entanto, vai se encarregando de nos colocar 
frente a frente, intimando-nos a dançar juntos uma gafieira 
que acabou de começar. E eu vou. 

De vez em quando erro uns passos, 
piso sem querer num ou noutro calo, 
mas ela – a Vida – continua alegre, olhando pra mim. 

Ao sentarmos novamente, exaustos, 
a cerveja amarga e as memórias já não 
nos servem mais, nem à discussão, nem ao consumo. 


3. 
Mas, na mesa ao lado, olhos fixos no horizonte, 
há uma Moça, de coração pulsante e vermelho. 
E agora é a própria Vida que me empurra e grita: 

 – Depois descansa, rapaz! 
Não perca esse coração: vá conhecê-lo! 
E, mais uma vez, mesmo sem jeito, eu vou. 

(por Filipe Couto)

sábado, 18 de janeiro de 2014

Poema 179

Há um mar em tudo que me rodeia, 
uma lua perdida no espaço, 
uma esperança que anima o horizonte 
e uma lágrima em tudo que faço. 

Nas águas que em mim e de mim correm, 
prossigo, profundamente afogado, 
à mercê dos caprichos do tempo, 
contemplando - vivo - outros naufrágios. 

Recolho os tesouros de tudo que vejo 
e os canto, quando emerjo num porto afastado. 
Depois, mergulho, de novo inteiro,
a fazer deste peito meu barco. 
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Poema 178

De que 
é feito o amor? 

Que matéria é essa 
de tantas camadas e texturas, 
surda às palavras que a tentam traduzir? 

Será esta a receita? 
Um punhado de receio, três gotas de instante, 
pinceladas de especiarias e segredos, 
forma untada de desejo, forno numa altura delirante? 

Pouco importa o que se ama; 
importa saber se o gosto persiste, 
verdadeiro, fiel a si mesmo. 

Porque o amor não é princípio, nem fim; 
é meio. 

(por Filipe Couto)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Poema 177

O céu de janeiro, 
no Rio, 
ora derrama azul, 
ora nos abraça cinza, 

e as mais das vezes nos embaralha a vista 
numa sucessão de púrpuras, limas e orquídeas. 

Mas o céu do Rio, 
em janeiro, 
também sabe ser negro,

cor que – lá de cima – mede faltas, distâncias, ausências 
e com que se pode matar a morte 

porque, quando não há nada, tudo se inventa.

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Poema 176

Existe uma ferida 
na noite de hoje. 

Viva. 

(Quando o poema me anoitece, 
sinto-a.)

E cada gota de sonho 
enxotado, exaurido 
que minha lágrima 
sobre ela pinga, 

não me traz alívio. 

Ao contrário, 
é nesse instante
que tudo que há de mim 

grita. 
(por Filipe Couto)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Poema 175

O que é o amor senão 
o encontro do lápis com a folha branca; 

não do lápis pensado - preso a uma mão opressora,
certa do desenho - cuidadoso para não derramar
uma gota de sílaba ou de sentido fora do contorno; 

mas do lápis que, imprevisível em seu curso, 
projeta formas e linhas e retas que não existem, 
e deixa a própria folha (tão branca) sem rumo. 

O poema - lápis e papel em vida - só termina (começaria?)
quando aquele leitor ranzinza, que busca a verdade de tudo,
 
se perde mais e mais ainda.
(por Filipe Couto)

domingo, 15 de setembro de 2013

Poema 174

Depois de tantos dias, tantas noites, 
vem de novo aquela ideia fixa 
escravizar-me com seu açoite. 

Para tentar romper esse grilhão, 
grito: "Não, não posso mais vê-la!",
"Amanhã mesmo, começo a esquecê-la!" 

Armo-me, então, para o conflito. 
Reúno forças e fico à espreita, 
esperando que ela, de novo, apareça. 

(Enquanto aguardo, me repito: 
"É a última vez que passo por isso; 
mato essa ideia e tudo está resolvido".) 

Sete mil noites e sete mil dias
já se passaram (meu coração 
em permanente fome e vigília),

e a ideia não aparece;
a luta (como sempre) se adia.

Onde, meu Deus, ela se esconde?
O que pretende? Por que se distancia?

É na ausência que ela se torna mais forte,
e, sem que eu perceba, não se trata mais
de uma inimiga a ser por mim combatida.

Pelo contrário:

eu sou dela, e ela é minha.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Poema 173

Neruda, numa noite como esta, 
depois de tantos sinais fechados, 
de tantas buzinas tentando mover o tráfego, 
de tanta fumaça embaçando sonhos, diálogos, 

poderia escrever versos ainda mais tristes que aqueles de outrora: 
"A noite está estrelada, e tiritam, azuis, os astros lá ao longe". 

Porque hoje não há estrelas, nem azuis, e os astros 
são mentiras criadas por alguns malandros,
que andam enganando tantos moços e moças 
com essa fantasia de prever destinos. 

Hoje, na profusão das coisas acontecidas, 
a noite se fez mais fria. 

E quem tirita
(com a alma em fogo e agonia)
sou eu. 
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Poema 172

Coisa amada – poema em três movimentos

1.
Por mais que eu me passe a limpo 
em poemas e sonhos, 

não te encontro, minha Coisa Amada
meu labirinto, meu trabalho de Sísifo.
 

Então, te invento, 
te crio.

2.
Diga: como saber quem é você,
se eu sequer sei quem sou?

(O tempo que vivo hoje é igual
a outro que passou. Mas qual?)

Recolho pelo chão roupas e dores
que são minhas, e não reconheço.

Tateio um escuro
de mim, Coisa Amada,

e tenho medo.


3.
Somos dedos da mesma mão,
filhos do mesmo delírio.

Somos um com o outro, Coisa Amada,
Quixote e Sancho contra gigantes

(e moinhos).

(por Filipe Couto)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Poema 171

Nesta noite alta 
em que cada estrela é uma surpresa aos olhos, 

finalmente entendo que viver é isto: 
não procurar sentido. 

Pois que o sentido rápido se escapa nas tramas das mensagens, 
na timidez dos olhares, nos sorrisos escondidos. 

E o viver é mais que isso; 
é mais que caçar o vento: é amá-lo, 

ainda que ele só nos bagunce os cabelos, 
ainda que só nos deixe ciscos. 

É nosso destino (seria vício?) 
esse amar destrambelhado e irresponsável, 
esse compromisso de papel passado com o imprevisível. 

Mesmo que muito doa, viver 
é isso.
(por Filipe Couto)

sábado, 17 de agosto de 2013

Poema 170

Insônia

Há no insone algo de semente, 
um mistério encerrado em claustro 
a se bater contra as paredes do sono, 
em meio a tudo que dorme indiferente. 

É dessa semente esquecida pelo tempo 
(e também dele filha) 
que o insone se alimenta: fruto que não existe, 
sem valor para o corpo, sem gosto para alma ou língua. 

E é dentro dessa substância 
sem carne, pele, cor, sabor e vida 
que já reside uma nova semente, 
atenta para ser colhida; 

semente fiel à sua natureza, 
sempre acordada, 
pronta para, das nossas entranhas, 
ser explodida.
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Poema 169

O poeta olha o Facebook

Ela era tão branca e tão linda, 
seus olhos tão claros, tão vivos, 
os braços abertos para o infinito, 
o sorriso leve, a cabeça erguida. 

Mas, para que ela fosse esse anjo de romaria, 
foram necessárias mãos calejadas, pés rachados, 
sonhos roubados, amores calados e choros contidos. 

Foram pretos - de beiços largos - que por séculos a fio 
serviram (escravos) aos que se disseram escolhidos 
para serem senhores de si e de tantos outros já nascidos. 

Foram tantas as vidas desperdiçadas e violadas, 
tantas as vidas que poderiam ter sido, 

para que ela hoje pudesse ser 
essa pintura - tão curtida e comentada -
que olha o mundo com o coração vazio.

(por Filipe Couto)

sábado, 10 de agosto de 2013

Poema 168

A água e a terra - meditação em quatro poemas 

1. 
Desnudo-me num novo jogo 
em que não sou mais eu 
(nome e corpo carregado de promessas) 
mas outro. 

2. 
Ser tantos e tão poucos, 
numa sucessão infinda de seres múltiplos e únicos, 
ausente de destino, 

como rio que se desloca imóvel, 
esquecido do que traz ou trouxe. 

3. 
Mas de que adianta saber-se água 
se o mundo quer terra? 

Vou-me. Passo. 
À frente, ninguém me espera. 

4.  
Antes que eu me perca, 
antes que eu nos perca nessa sucessão de mim, 
bebe-me inteiro, amor.

E se não puder
(por já estar saciada a sede)

mergulha-me, transborda-me para a tua terra 
e deixa-me ser parte daquilo que te nutre. 

E quando surgirem flores, amor, 
colhe... colhe o que de mim ainda resta.
(por Filipe Couto)

terça-feira, 9 de julho de 2013

Poema 167

Papai, tem uma moça estranha lá fora. Foi o vento que trouxe. Abro a porta? 
– Pergunte primeiro de onde vem, pra onde vai, o que quer, o que traz. 

Papai, pergunto, e ela não me diz nada. Pára, e sorri com os olhos, clareia o que é madrugada. Devo chamá-la? 
– Mande-a embora... Que coisa posso querer com alguém trazido pelo vento? Que não gosta de palavras?

Meu pai gostava de tudo claro e certo; 
eu gostava de mistério, 
de fazer sombra ganhar asa. 

Ainda hoje, quando venta, 
faço de conta que é comigo
e espio, menino, a janela: 

quem sabe ela ainda me espera? 
(por Filipe Couto)

terça-feira, 30 de abril de 2013

Poema 166

Uma releitura de "Life of Pi" em quatro movimentos

1.  
Era ainda alta a madrugada 
quando, num barco, se posta 
à minha frente um tigre-de-bengala. 

Ciente de sua força, ele marca 
seu espaço: rosna, avança, grita, 
como se eu já não estivesse apavorado. 

2. 
Como dividir um barco com um ser, 
sem que se possa conhecê-lo ou tocá-lo? 

Um tigre é antes distância e deserto: 
mesmo perto, não se pode alcançá-lo. 

3. 
Existe um fascínio macabro naquilo 
que não se pode ter, nos olhos a serem 
decifrados, nos pelos sempre eriçados,

naquilo que
em vez de nos matar
nos deixa cruelmente paralisados.

4. 
E perdemos tanto tempo e tanta vida 
com esses tigres que se postam ao nosso lado 

que esquecemos que nos sustenta neste mar 
a inefável leveza de um barco. 
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 28 de março de 2013

Poema 165

Não tem nome este suspiro 
lavado de lágrimas, 

nem se pode reconstruir com palavras 
os carinhos que o verão levou. 

Mas que importa um nome, 
se no céu clandestino que hoje sobre mim desaba 
há tantas nuvens, tantos calores e perfumes? 

Seria um nome capaz de controlar a queda 
deste corpo de vigas carcomidas 
e veias abertas? 

Um nome se inventa: 
te chamo “saudade”, “bobeira”, 
“amor”, “perigo”, “vida”. 

Mas não se inventa este suspiro 
lavado de lágrimas, 

que, nesta noite, 
me faz companhia.
(por Filipe Couto)

sábado, 2 de março de 2013

Poema 164

Pela janela do meu quarto, passarão dias azuis
com gaivotas abertas como velas ao mar.

E haverá também horas escuras e graves,
de ar partido por silêncios e tempestades.

Mas até que um doce e antigo vento
te sopre de volta, eu estarei aqui;

enquanto um abraço puder (nos) amanhecer
e uma palavra, como um pássaro,
puder te trazer,

eu estarei aqui.

                          Sozinho. 


                                         Com você. 
(por Filipe Couto)

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Poema 163

Saibam quantos estes meus versos virem
que não desistimos da luta;

que ainda há um vento que sopra à noite
espalhando prenúncios pelas ruas;

que nos tambores de minha cidade
batem em compasso dores e alegrias
(as crianças nos sinais e o samba da nossa Vila);

que dentro da gente da minha terra
cresce um monstro, com olhos enormes (em alerta),
a devorar aqueles zumbis nos sofás, diante das tevês.

Porque à vida não se nega uma chance,
e não será deles uma gota do nosso sangue,

enquanto um sorriso puder nos comover.

(por Filipe Couto)

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Poema 162

Não, eu não posso mais. 
Não de novo.
Avisem a ela.

Expliquem que agora 
sou eu que estou em voo,

e não posso encontrá-la. 
Não olho a olho.

Supliquem para que não me chame,
que meu corpo (sonho e sangue)
não tem medo do que aconteceu (antes).

Façam, amigos, façam das suas a minha voz 
(hoje perdida em algum canto, em algum pranto)

e gritem e gritem que para sempre serei dela
e que por isso é que preciso partir
e me tornar outro.

Porque eu não posso mais.

Não de novo.
(por Filipe Couto)

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Poema 161

Novamente as horas passam 
sem propósito ou escolha, 

perdidas, 
imbricadas umas nas outras. 

Alheias ao que despertam ou cessam, 
ao antes e ao depois, 

as horas brincam de roda, 
se devoram, se renovam,

enquanto na parede da sala resiste 
(embora amarelada) 
uma foto, 

tão só lembrança de nós dois. 
(por Filipe Couto)

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Poema 160

A palavra e o sentido

Sobre a mesa já velha e cansada, pousa o poeta
papel e silêncio.

À espera do verso, busca 
aquelas memórias mais tímidas (e se diverte com elas). 
Então, ele puxa dali um fio de história e a desenrola até poder 
amarrar um sentido.

Mas poesia não é sentido.

A poesia não está no tijolo sobre tijolo (previsível edifício,
como a nossa vida bovina de ração, reprodução e rotina).

A poesia só acontece quando um pássaro

foge, 
             sem asas, 
                                 de um poente em chamas;

ou quando se tenta pregar 
                                          o curso de um rio 
ou quando uma pedra 
                                          por ele se encanta.

Cabe ao poeta desamarrar o sentido,
e repousá-lo num escuro tão escuro 
             que é claro e vivo.

Pois só assim também ele pode despertar 
das lembranças e plantar noutro terreno (talvez)
aquele seu primeiro beijo e logo
recolher seu sumo, não por inteiro,

mas até estar forte para 
conseguir respirar apenas silêncio

e enxergar, sem surpresa, 
naquele pouso do papel,

uma boia a salvar a mesa.
(por Filipe Couto)


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Poema 159

Amanhã (poema em dois movimentos)

1.
Amanhã não será outro dia,

pois que a vida de verdade (não esta fingida
das fotos, das festas, dos comerciais de margarina) 

não tem começo, nem fim.

Continuaremos, pasteurizados, em marcha,
a dar de cara com os mesmos erros e acertos,

prontos para consumo imediato,
em busca da alegria que nos prometeram.

2.
Antes de me recolher, no entanto, posto-me 
em frente ao espelho, e não me reconheço:

"– Quem é esse nas minhas roupas,
usando meu nome, meu rosto,
deixando palavras na minha boca...?
Quem é? Que coisa quer, de onde vem?"

Sem resposta, maquinalmente, programo 
o despertador (uso uma composição de Chopin)
e me ponho a dormir.

Quem sabe amanhã?
(por Filipe Couto)