Porque existes, Amor, vigio
e preparo meu corpo
para te receber:
sentidos aguçados, lábios
prontos para que possas deitar,
morrer, viver em mim.
Depois do amanhecer,
guardo tudo com cuidado,
cada sonho num lugar.
Despido de ti, saio ao mundo
sem medo de ir além.
Porque sei que existes, Amor.
Não se vens.
(por Filipe Couto)
O povo não é feito de previsíveis ondas,
composto pelas mesmas águas ritmadas.
O povo mora ao fundo - de nós, do mundo -
e pouco é ouvido por quem está na praia, surdo.
O povo não é paisagem ou fotografia;
é movimento eriçado, é força disruptiva.
O povo está (acredito) em constante vigília
e pronto para desmascarar a todos.
Um dia.
(por Filipe Couto)
A Vida e eu - poema em três movimentos
1.
Nesta noite abafada de verão carioca,
sentamos, à mesa de um bar, a Vida e eu.
Ela (tensa) pede uma cerveja leve; eu amarga,
e logo tentamos decifrar os pequenos sinais
que vão revelar o que queremos um do outro.
Sobre a mesa posta, repousa uma porção farta de memórias,
salteadas na chapa com dor, alho, sal e alma,
enquanto os copos, com espumas e estrelas, unem céu e mar.
2.
Aos poucos já nos pegamos rindo à toa,
e, de tão natural, já nem percebemos nossas presenças,
no desenrolar dos batuques, que ecoam por ali .
O Tempo, no entanto, vai se encarregando de nos colocar
frente a frente, intimando-nos a dançar juntos
uma gafieira
que acabou de começar. E eu vou.
De vez em quando erro uns passos,
piso sem querer num ou noutro calo,
mas ela – a Vida – continua alegre, olhando pra mim.
Ao sentarmos novamente, exaustos,
a cerveja amarga e as memórias já não
nos servem mais, nem à discussão, nem ao consumo.
3.
Mas, na mesa ao lado, olhos fixos no horizonte,
há uma Moça, de coração pulsante e vermelho.
E agora é a própria Vida que me empurra e grita:
– Depois descansa, rapaz!
Não perca esse coração: vá conhecê-lo!
E, mais uma vez, mesmo sem jeito, eu vou.
(por Filipe Couto)
Há um mar em tudo que me rodeia,
uma lua perdida no espaço,
uma esperança que anima o horizonte
e uma lágrima em tudo que faço.
Nas águas que em mim e de mim correm,
prossigo, profundamente afogado,
à mercê dos caprichos do tempo,
contemplando - vivo - outros naufrágios.
Recolho os tesouros de tudo que vejo
e os canto, quando emerjo num porto afastado.
Depois, mergulho, de novo inteiro,
a fazer deste peito meu barco.
(por Filipe Couto)
De que
é feito o amor?
Que matéria é essa
de tantas camadas e texturas,
surda às palavras que a tentam traduzir?
Será esta a receita?
Um punhado de receio, três gotas de instante,
pinceladas de especiarias e segredos,
forma untada de desejo, forno numa altura delirante?
Pouco importa o que se ama;
importa saber se o gosto persiste,
verdadeiro, fiel a si mesmo.
Porque o amor não é princípio, nem fim;
é meio.
(por Filipe Couto)
O céu de janeiro,
no Rio,
ora derrama azul,
ora nos abraça cinza,
e as mais das vezes nos embaralha a vista
numa sucessão de púrpuras, limas e orquídeas.
Mas o céu do Rio,
em janeiro,
também sabe ser negro,
cor que – lá de cima – mede faltas, distâncias, ausências
e com que se pode matar a morte
porque, quando não há nada, tudo se inventa.
(por Filipe Couto)